Glauber Rocha: a linguagem revolucionária do Cinema

Glauber Rocha: a linguagem revolucionária do Cinema

*Texto adaptado de artigo científico apresentado no II Congresso Internacional de Linguagem em 2017, na Universidade Estadual de Ponta Grossa, sob orientação do Profº Ms. Carlos Ricardo Grokorriski.

O desenvolvimento do cinema enquanto linguagem estética é paralelo à sua evolução como artefato de entretenimento. A relação do pensamento com a imagem sofreu uma profunda alteração com o surgimento da fotografia, quando a pintura se liberta de sua atribuição de retratar a realidade, seja pelo simbolismo ou pelo realismo das formas. A fotografia supre a necessidade de realismo da pintura, criando relação temporal diversa com a imagem. A própria realidade é moldada e “re-presentada” na imagem fotográfica. O tempo se fixa numa eternidade inabalável, sendo acessível a quem nunca pensou em conhecer tal realidade. A continuidade dessa tentativa de reter o tempo, de retardar a corrosão da morte, nos parece ser o cinema. Ele surge como uma idealização de poder eternizar o próprio movimento. Mas logo as possibilidades do cinema se abrem à arte. Por outro lado, cria-se uma indústria cinematográfica para atender uma demanda de prazer, a necessidade de “re-presentação” do real. Podemos dizer, então, que a imagem cinematográfica foi tomada tanto pela arte quanto pelo mercado.

O contexto em que nasce o cinema de Glauber Rocha é o da proposta de se subverter o cinema que se via no Brasil. No final da década de 1950 alguns cineastas se reuniram para pensar a situação da produção cinematográfica brasileira. Os filmes eram produzidos sob o molde da indústria cinematográfica estrangeira, principalmente do grande mercado estadunidense, ou no reflexo de uma demanda mercadológica nacional. Via-se que o conteúdo estético se esvaziava em detrimento do comércio. Pouco se criava artisticamente, pois a distribuição dos filmes no país se limitava ao consumo dos padrões do cinema estrangeiro. Dessa visão crítica nasceu o Cinema Novo brasileiro. Seu objetivo era o de tomar a imagem cinematográfica e dar-lhe uma identidade nacional, algo que se distanciasse da mera reprodução e se aliasse à potência criadora, dando-lhe possibilidade de produção e difusão enquanto conteúdo artístico e político.

Glauber Rocha talvez seja o principal nome desse movimento que buscava quebrar com a “normalidade” da imagem e propor uma discussão política. Era preciso que o Cinema fosse percebido pela via do próprio povo subdesenvolvido. Então, Rocha tomava dos signos da imagem sua linguagem revolucionária. Mas como fazer com que um filme traga à tona o inconsciente oprimido do terceiro-mundista? O cineasta esmiúça essa questão em dois manifestos estéticos que são reflexos de sua obra e visão política: Estética da Fome e Eztetyka do Sonho.

1. Estética da Fome

Reprodução

Buscando respostas para o cinema brasileiro, Glauber Rocha apresenta sua primeira tese em Gênova, na Resenha do Cinema Latino-Americano, onde o tema proposto era “Cinema Novo e Cinema Mundial”. O que tornava a tentativa desse novo tipo de filme no Brasil uma linguagem revolucionária? O mundo tomava conhecimento da demanda política daquele grupo de cineastas, roteiristas, editores, etc. e a luta para quebrar o vínculo com o olhar do colono. O país de terceiro mundo precisa ser visto de si para si mesmo, por mais miserável que seja a realidade, por mais duras que sejam as imagens. A estética da fome surge como um posicionamento de Rocha perante a arte cinematográfica no país e as pretensões com sua obra.

Eis – fundamentalmente – a situação das Artes do Brasil diante do mundo: até hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que vulgarizaram os problemas sociais) conseguiram se comunicar em termos quantitativos, provocando uma série de equívocos que não terminam nos limites da arte, mas contaminam sobretudo o terreno geral político. […] A América Latina, inegavelmente, permanece colônia, e o que diferencia o colonialismo de ontem do atual é apenas a forma aprimorada do colonizador: e, além dos colonizadores de fato, as formas sutis daqueles que também sobre nós armam futuros botes.

(ROCHA, 1965)

Uma estrutura opressora, por mais que silenciosa, mantém as Artes sob o olhar colonizado. Não há  independência do pensamento e da expressão artística. O que se vê é o que os olhos do colonizador veem sobre o que é produzido no país subdesenvolvido. O que Glauber Rocha parece dizer é que tudo necessita de certa afirmação e aceitação do primeiro mundo, o que gera um “raquitismo filosófico”. A crítica política se torna rasa, porque não é pensada em si mesma, sob as características específicas de uma nação múltipla, um povo que surgiu da miscigenação e da exploração.

Os signos da fome, do miserabilismo, da mendicância, com que Rocha constrói seus filmes visam outro tipo de revolução. Os métodos revolucionários que proclamam uma unidade do povo, um único pensamento do oprimido, uma fórmula de luta capaz de mudar o mundo não valem por si sós. O que se tem aqui é o oposto: a impossibilidade de união, uma fórmula não dada.

A ideia revolucionária clássica acaba por ser mera troca de comando, uma luta de poderes opostos que não entram no âmago do problema. No âmbito de um país como o Brasil, povo múltiplo em terras vastas, a possibilidade de união é inviável. Dentro da própria nação há falhas na identificação do cerne do problema. Por exemplo, é difícil um povo do sul do Brasil compreender a real necessidade do povo nordestino. Foram povos que surgiram de conexões diferentes, com histórias diferentes e nascentes de outras culturas. O cinema de Glauber Rocha não cria ilusões, mas, sim, a própria potência de criação a partir da tomada de consciência.

O grande exemplo da obra de Rocha na estética da fome é Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). Eis um retrato poético do povo nordestino diante da seca, da fome, das tentativas de revolta e dos fracassos. O filme conta a jornada épica de Manoel e Rosa atravessando o Sertão em busca de respostas para as injustiças de seu mundo. Ficar parado não adianta. O casal procura a “religião”. Encontram uma comitiva que segue a Santo Sebastião, beato que diz rumar além das montanhas, onde o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão. Manoel se enxerga como reflexo no rosto de cada um dos seguidores do Santo. O que salvaria o casal da fome e da pobreza seria a fé! Rosa é a personagem mais desiludida. Não vê em seu corpo uma gota de ânimo para se agarrar à fé.  Depois de uma cruel peregrinação Manoel acaba por também se desiludir. Há uma violência inexplicável e que não mostra o fim da miséria, mas revela a estranheza obscura de Santo Sebastião e seu discurso de fé. Manoel logo se vê em busca de uma nova ilusão; Rosa o acompanha mais com curiosidade do que com ideologias. Deparam-se com a violência desenfreada do cangaceiro Corisco. Na total injustiça que vivenciam, o cangaço se mostra como uma revolta contra a pobreza. Corisco dizia matar os pobres à bala para que não morressem de fome. Não há saída a não ser o desapego da vida. Mas Manoel descobre um mundo ainda mais injusto do que a realidade de vaqueiro que conhecia. Então, parece que ele retorna ao ponto de onde saiu, mas do lado inverso. O casal não deve aceitar ser aquilo de que fugiram. Isso também não é a resposta para a miséria. O sertão não virou mar e o mar não virou sertão.

Glauber Rocha não dá respostas em Deus e o Diabo na Terra do Sol, não é esse o objetivo. Trata-se de uma tomada de consciência da própria miséria, uma “estranha positividade” da pobreza. O mais próximo que poderíamos chegar de uma conclusão é o que canta Sergio Ricardo na trilha sonora do filme: “a terra é do homem, não é de Deus nem do Diabo”. A fé e a violência não fizeram a revolução porque há algo antes disso, há a própria consciência de um povo que precisa se reconhecer enquanto não existente. Não há um povo unido. O que há são as impossibilidades de um povo mutilado pela fome.

Às margens de um cinema industrial caminha o Cinema Novo de Glauber Rocha. A psicologia da imagem aqui é a tomada da consciência do oprimido de sua própria situação, extrair da inconsciência a estrutura que boicota a criação intelectual pura de um pensamento autônomo.

2. Eztetyka do Sonho

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Em 1971 Glauber Rocha vê a necessidade de atualizar as palavras de seu primeiro manifesto. Cria, então, a “Eztetyka do Sonho”, em um congresso na Columbia University, Nova York. Diante da força das estruturas opressoras a estética da fome não conseguiu quebrar todas as amarras. Silenciosamente, a fome é enquadrada dentro de uma estrutura social que a explica e a resolve. Mas, certamente, isso não se faz verdade para Rocha: a tomada de consciência não foi resolvida. Se a violência da fome não foi capaz de tornar o inconsciente livre da opressão, o que será?

Um ato de resistência jamais pode ser estático. É assim que Rocha parece ver o cinema. Um movimento constante deve atualizar seus objetivos, sua linguagem. A Eztetyka do Sonho atualiza a Estética da Fome e marca um novo caminho da cinematografia do autor. A miséria acabou por ainda se manter sob as vistas do colonizador. Estudos estatísticos propõem soluções para a fome alimentando o povo. Mas o que Glauber Rocha questiona é se a pobreza foi realmente sentida. Ela foi realmente entendida para ser sanada, para que a revolução seja feita? Reduzir o miserabilismo do povo apenas aos números é medíocre, assim como a arte que se diz revolucionária, mas não aceita mudanças. O cinema requer novamente mudanças para atingir a linguagem revolucionária.

Uma obra de arte revolucionária deveria não só atuar de modo imediatamente político como também promover a especulação filosófica, criando uma estética do eterno movimento humano rumo à sua integração cósmica.

(ROCHA, 1971)

Os movimentos políticos brasileiros se prendem à razão conservadora. Por um lado, uma teoria imóvel, por outro, uma revolta que acaba por ser abafada pela opressão intelectual e artística. Ainda se vê o povo pelos olhos do colonizador. Portanto, por mais racional que seja uma proposição de revolução, ela não garante o verdadeiro ato de resistência da arte: um sentimento inconsciente capaz de criar a potência da verdadeira revolução. Se a razão não deu conta de uma revolução total contra a pobreza, a proposta da Eztetyka do Sonho é a de quebrar vínculos com ela. O que a estrutura dominante chama de irracional, na linguagem do cinema-político de Glauber Rocha é uma linha de fuga da opressão.

Nesse caso, o exemplo que podemos dar é do filme derradeiro de Rocha: A Idade da Terra (1980). Parece-nos que essa obra atinge o ápice do sonho. Vê-se a cultura do carnaval carioca entrecortado pelos discursos de um deus mundano. Ou, então, um deus negro que evoca seus poderes contra a pobreza transformando água em Coca-Cola. Nas ruas de Brasília um lunático estrangeiro diz trazer a riqueza para o Brasil. Há também uma encenação de Édipo Rei coordenada aos berros pelo próprio Glauber Rocha. E, quando um ator parece ter se machucado em uma das cenas lunáticas, Rocha coloca a câmera sobre seu rosto e captura a dor do capitalismo. Indígenas dançam nos jardins do Planalto. Um faraó e um pai de santo também aparecem. Cenas repetidas dezenas de vezes e uma imagem flutuante do céu. A Idade da Terra não segue um roteiro, não tem um método cinematográfico. Ele opera criando sonhos, delírios, pesadelos, de um país que não conseguiu se desenvolver plenamente. No sonho o opressor não pode dominar. Eis a revolução.

O sonho é o único direito que não se pode proibir […]. Há de tocar, pela comunhão, o ponto vital da pobreza que é seu misticismo, este misticismo é a única linguagem que transcende ao esquema racional da opressão. A revolução é uma mágica porque é o imprevisto dentro da razão dominadora. No máximo é vista como uma possibilidade compreensível. Mas a revolução deve ser uma impossibilidade de compreensão para a razão dominadora de tal forma que ela mesma se negue e se devore diante de sua impossibilidade de compreender.

(ROCHA, 1971)

Glauber Rocha eleva à máxima potência a experiência estética de um cinema revolucionário. O choque entre os signos de sua imagem, o povo terceiro mundista e a realidade opressora formam a semiose de uma linguagem que ganha o sentido mais íntimo em cada espectador e coloca o inconsciente em efervescência.

Certamente o cinema de Glauber Rocha é aquele que explora inúmeras facetas da imagem cinematográfica e não se prende às convenções. Ele não opera com o tempo cronológico, com a tentativa de mera eternização, mas vai além, fornece ferramentas para a tomada de consciência do povo subdesenvolvido, tornando a arte um ato de resistência às estruturas que afetam o inconsciente.

Atualmente é possível assistir aos dois filmes citados gratuitamente pelo YouTube:
Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964)
A Idade da Terra (1980).

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