Os Banshees de Inisherin | 2022

Os Banshees de Inisherin | 2022

“Ele não pareceu ter recebido uma notícia ruim. Parecia ter tirado um peso dos ombros”.

Na mitologia celta e na cultura irlandesa, Banshee é uma figura feminina, uma fada ou uma espécie de espírito, de olhos marejados e vermelhos, designada como mensageira da morte e das más notícias, que se utiliza da música e do canto para transmiti-las. Em Os Banshees de Inisherin, novo filme roteirizado e dirigido por Martin McDonagh (de Três Anúncios para um Crime), indicado à 9 estatuetas do Oscar, o assombro e até a expectativa do mau-agouro integra a atmosfera da ilha-título, que além de limitar o espaço narrativo, serve ao filme para elevar a importância da presença da mitologia como condutora onipresente dos acontecimentos um tanto inusitados que acompanhamos.

A premissa de Os Banshees de Inisherin é simples. Repetindo o que parece ser uma rotina de muitos anos, Pádraic (Colin Farrell) percorre a ilha e seus caminhos cuidadosamente delineados por pedras, cumprimentando pessoas aqui e acolá com muita simpatia, até chegar a um casebre defronte ao vasto oceano um tanto revolto. Ali, ele bate à porta e chama por Colm (Brendan Gleeson) para a ida diária ao único pub da ilha. Ao olhar pela janela, Pádraic o vê sentado, fumando um cigarro, claramente o ouvindo sem, porém, respondê-lo. Mais tarde, a estranha atitude de Colm é esclarecida pelo personagem, num diálogo com Siobhán (Kerry Condon), irmã de Pádraic:

“Colm: Ele é chato, Siobhán.

Siobhán: Mas ele sempre foi chato. O que mudou?

Colm: Eu mudei”.

Colm, então, impõe um pedido de afastamento e silêncio ao amigo, e são as consequências desse drástico limite, e sua expansão para a harmonia da ilha e seus demais habitantes é que conduzem a narrativa, numa complexidade crescente e cativante, abraçando um viés psicológico e social surpreendentemente profundo.

Os Banshees de Inisherin depende da complexidade do ser humano e suas relações, e essa é uma dependência enriquecedora ao cinema. Somos observadores (e julgadores) de personagens bastante irritantes e duvidosos, porém, nas mãos de Martin McDonagh, que imprime uma humanidade e uma fragilidade absurda e tocante a cada um deles, compreendemos suas questões, suas decisões, sem exatamente tomar um lado, através da provocação de um sentimento que também se mostra muito presente nos personagens: a empatia.

A atmosfera do filme muda conforme a evolução dos sentimentos de Pádraic. A simpatia, a camaradagem exagerada e até inocente do personagem vai sendo sugada para dar espaço a uma autodescoberta sombria, imposta da forma mais cruel pela rejeição do melhor amigo e pelo questionamento de sua própria personalidade e da forma como ele mesmo se via naquele microcosmo ilhado. A obrigação de olhar para si mesmo para um personagem que jamais se questiona, que é excessivamente positivo, para uma mente masculina que nunca se viu só e que repentinamente vê a estabilidade que o cercava ruir, faz surgir uma dor que ele não consegue compreender e elaborar.

A falta de capacidade de elaboração e reflexão dos próprios sentimentos torna a Pádraic incompreensível a atitude súbita de Colm. E sua incompreensão é tamanha que ele simplesmente ignora os limites impostos pelo até então amigo, insistindo em manter uma relação que claramente era unilateral.

“Padre: Como vai o desespero?

Colm: Piorou um pouco”.

Colm é o oposto de Pádraic, em personalidade, em intelecto, em interesses. Mais velho, se percebe numa crise existencial profunda que torna insuportável a ideia de ser esquecido após a morte, de não deixar legados ou ações memoráveis. Para ele, passar horas e horas na companhia do amigo passa a ser sinônimo de improdutividade, de vida que passa sem frutos. Seu desespero por sentir-se útil, produtivo, sua necessidade de autorreflexão e de acolhimento de seus próprios sentimentos o fazem ser drástico. Colm quer silêncio, e Pádraic não conhece o silêncio.

O legado buscado por Colm é a música. Quando o personagem decide compor e levar sua música ao universo de Inisherin, é como se a presença da Banshee fosse anunciada. A onda de más notícias e acontecimentos estranhos é quase uma consequência da atitude e da música de Colm, que ousa mexer no vespeiro que é a introspecção masculina.

A própria Banshee é personificada. Como um dos muitos elementos do filme que trazem um estranhamento constante, a presença de uma personagem feminina vestida com uma longa capa preta e dona de olhos grandes, vermelhos e marejados, como moradora da ilha, é evitada pelos habitantes, tal como se evitam as más notícias e se foge do anúncio de morte.

A ambientação de Inisherin colabora para a aura de mau presságio. O mar é revolto, quase sempre visto de longe, de forma a intensificar a ideia de isolamento. O que não é cinza é de um verde-grama muito intenso e dissonante. No continente, a presença da guerra (católicos x protestantes) que está ao mesmo tempo tão longe e tão perto, assusta os habitantes da ilha com as repentinas explosões e tiros. Evidenciando o catolicismo daquele lugar, o tempo todo a câmera busca, como num passeio, imagens santas, a presença da cruz, do terço, que são colocadas, por vezes, nas janelas que dividem os personagens.

Além da misteriosa figura da Banshee, a única personagem feminina de relevância na narrativa é Siobhán, mulher que claramente não pertence àquela ilha. Letrada, culta e insubmissa, a única amarra que a prende à Inisherin é o irmão e o amor compartilhado entre eles. Entretanto, a bagunça e a toxicidade das relações masculinas daquele lugar e o prenúncio trágico que vai se formando tornam ainda mais evidente que aquele não é seu lugar. O próprio figurino de Siobhán, por vezes um amarelo mostarda gritante, destoa do tom acinzentado de tudo.

A devoção e o cuidado mútuo entre os irmãos é tocante. Embora dois adultos, é doce que os irmãos compartilhem o mesmo quarto. Aliás, essa devoção representa um dos lados da personalidade de Pádraic capaz de comover o espectador. Ao mesmo tempo em que nos vemos irritados com a incompreensão e a incapacidade do personagem em respeitar a paz e o espaço alheios, Martin McDonagh atribui a ele toques de doçura que reforçam sua humanidade, seja na relação com a irmã, seja pelo amor imenso que o personagem sente pelos animais, os mantendo dentro de casa porque sabe que anseiam por companhia (assim como ele), num relacionamento que não exige desgastes ou trocas.

Completando o quarteto de grandes atuações de Os Banshees de Inisherin reconhecidas pela Academia, Barry Keoghan interpreta Dominic, um garoto problemático, sem filtros, de falas perigosas e asquerosas, o pária da ilha, que passa a ser companhia de Pádraic e interventor na relação (ou a falta de) dele com Colm. Há, em que pese todos os seus aspectos julgáveis, uma afabilidade, uma fragilidade e um sofrimento nele que também atraem a empatia e o acolhimento do espectador.

Os Banshees de Inisherin é uma leitura inteligente da mente, do orgulho, do egoísmo, do medo e do desespero masculino perante a solidão e o autoconhecimento. Um retrato dual, sombrio e terno, repugnante e comovente nas fragilidades que expõe. A ausência e até o distanciamento proposital de uma organização psicológica e sentimental é sempre um presságio do caos humano que, hora ou outra, virá. “Aposto que entram em guerra de novo em breve, não acha? Algumas coisas não podem ser superadas. E acho que isso é uma coisa boa”.

Assistimos ao filme à convite da Searchlight Pictures e da bcbiz. O filme estreia somente nos cinemas em 02 de fevereiro.

Os Banshees de Inisherin está entre os indicados ao Oscar 2023 de melhor filme, veja a lista completa AQUI

Nota

Author

  • Natália Bocanera

    Na escassez de tempo, entre advogar e dedicar-se à sua dezena de felinos, escolheu o cinema como ponto de equilíbrio e formação individual do seu "eu", em permanente descoberta.

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