O Jogador: Altman toca jazz
O Jazz
As notas musicais são como a água – elas tomam a forma de quem as está usando. O seu Dó pode fazer alguém chorar, mas o Dó de outra pessoa pode fazer alguém rir. Esta é a beleza da criação: não temos que seguir a mesma linha para conseguir o mesmo resultado.
Ornette Coleman
Assim como diversos outros gêneros musicais cooptados pela colonização e indústria culturais, o jazz nasce dos negros. Em meados do século XIX, em Nova Orleans, Estados Unidos, florescia no berço da comunidade afro-americana um ritmo que agenciava com o clássico blues, com o swing do ragtime, e trazia um elemento fundamental que marcaria seu estilo: a improvisação. Essa mistura representava uma resistência e um refúgio da estrutura racista que permeava, e, infelizmente, ainda permeia, a sociedade estadunidense.
O jazz ganha notoriedade no início do século XX, mas ainda era tido como “sujo”, marginal, dos pequenos bares onde os músicos negros se reuniam para a improvisação. Resistindo e, assim, se espalhando pelos Estados Unidos, surgem diversas variantes do ritmo, tendo como base a instrumentalização de metais, sopro e palheta. Logo é introduzido o canto e grandes nomes da música aparecem no cenário mundial, como Billie Holiday, Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald e Louis Armstrong.
Há uma estrutura nesse gênero musical que, principalmente nas apresentações ao vivo, estabelece uma forma de diálogo, uma conjunção entre os músicos que conseguem, ao mesmo tempo, expressar a sua individualidade através do instrumento que tocam, bem como unificar suas vozes . Uma marcação pode iniciar a música e se perder durante minutos de improviso até que se faça surgir novamente a mesma batida de antes. Nesse meio tempo se levantam o sax, o trompete, o baixo, enfim, cada instrumento abre uma brecha para se exaltar e “falar” com o público. É como um movimento de experimentação, onde se vai até certo ponto para encontrar ali algo novo, uma variação, uma vertente daquilo que já se sabe. Os filósofos franceses Deleuze e Guattari usariam dessa característica jazzística para traçar o conceito de ritornelo, sobre o qual recomendamos a leitura do texto Deleuze e Guattari – Ritornelo (e o Jazz), do blog Razão Inadequada.
O jazz é a música que expressa o melhor do espírito humano. Tem a ver com a ideia de compartilhar, não com a de competir. Jazz tem a ver com o trabalho em grupo.
Herbie Hancock
Robert Altman nasceu no ano de 1925, na cidade de Kansas, um dos lugares onde o jazz se popularizou. Portanto, viveu a efervescência do movimento durante sua adolescência, onde frequentava diversos clubes para se deleitar com a improvisação dos músicos. Em entrevista, o cineasta relembra a magia daqueles eventos em que a música parecia seguir por vias desconhecidas, inexploradas, em que o ritmo ganhava uma infinidade de variações. Como cita Herbie Hancock na frase acima, Altman presenciava aqueles solos de instrumentos que se fundiam, cada um em sua individualidade, para dentro de algo muito maior e caloroso, um compartilhamento espiritual dentro do caos em notas musicais.
É o movimento caótico do jazz que persegue a vida de Robert Altman, mesmo quando abdica de sua moradia no Kansas para participar da Segunda Guerra Mundial. Ao retornar, acaba se envolvendo com o mundo cinematográfico e passa a residir em Los Angeles, primeiro produzindo filmes comerciais, até conseguir dirigir seu primeiro longa em 1957, Os Delinquentes. Altman conta que passou grande parte do tempo se entregando a projetos menos artísticos para se aperfeiçoar tecnicamente. Então, entrando para a indústria do Cinema, ele passa a década de 60 produzindo filmes, em grande parte encomendados pela televisão, mas, ainda assim, sem reconhecimento por seu trabalho. Robert Altman só seria notado ao assinar M*A*S*H*, em 1970, uma sátira sobre a guerra e o amor bélico dos Estados Unidos da América.
A produção de M*A*S*H* é recheada de lendas, como, por exemplo, a história de que ninguém tinha o roteiro quando foram visitados pelos produtores do estúdio durante as filmagens . Além disso, houve um conflito de egos entre Robert Altman e os atores principais, Donald Sutherland e Elliott Gould, onde alegavam estarem sendo ofuscados pela forma como o diretor retratava os outros personagens. Entretanto, há nesse filme a estrutura jazzística a que nos referimos, e, justamente por isso, o foco de Altman nunca é unicamente em personagens, mas sim em como eles são submersos no universo caótico que os cerca, em um mundo imprevisível e, por isso, improvisado.
Altman
M*A*S*H* é o grande precursor do modo Altman de fazer filmes. Câmeras que se movimentam entre uma multidão, usando o recurso do zoom, microfones que captam diversos diálogos ao mesmo tempo ou alternando no mesmo quadro, personagens que se envolvem em situações bizarras e respondem de forma mais desconexa ainda. Depois do sucesso de M*A*S*H*, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes e foi indicado a cinco categorias no Oscar, inclusive melhor direção e, ironicamente, vencendo como melhor roteiro adaptado, Altman produziu diversos clássicos dentro da estrutura do jazz: Onde os Homens São Homens (1971), Nashville (1975) e Short Cuts (1993). Robert Altman praticamente formaliza um jeito de fazer filmes que cruza diversas histórias e personagens pelo “acaso”, como Magnólia (1999), dirigido por Paul Thomas Anderson, confesso fã da obra de Altman, e Babel (2006), de Alejandro Iñarritú.
Com uma filmografia muito extensa, também vieram muitos fracassos, levando em conta o que a indústria cinematográfica esperava, como O Quinteto (1979), com o astro Paul Newman, uma versão musical de Popeye (1980) e o fraquíssimo Dr. T e as Mulheres (2000). Na maioria dos casos as críticas foram injustas com os filmes de Robert Altman. Em poucos momentos ele abandonou seu estilo de direção, mas sempre para fazer novas experimentações em outras áreas. O próprio cineasta afirmava que era necessário estar em constante aprendizado. Justamente por isso passeou por diversos gêneros do Cinema.
Robert Altman deve muito à cultura afro-americana do jazz na cidade do Kansas. Por diversas vezes prestou sua homenagem àquilo que carregou como sua forma de comunicar a Arte, seja pelas trilhas sonoras de seus filmes, ou então em obras que traziam o jazz como parte do enredo (Kansas City [1996]). O caos se tornou matéria-prima para histórias que ora se elaboravam no mais complexo suspense, ora como uma comédia leve ou então ácida.
O Jogador
O jogo cinematográfico de Robert Altman se revela ainda mais refinado em O Jogador, filme de 1992 que lhe rendeu a terceira indicação ao Oscar de melhor diretor (ao todo seriam cinco). Assim como no jazz, a base estrutural está formada e, a partir daí, nascem suas derivações, como nos improvisos dos músicos. Cada momento individual opera por si só, mas nunca em dissonância com o todo, que sempre retorna ao final.
Diferente dos já citados Nashville e Short Cuts, O Jogador tem um personagem principal, Griffin Mill, interpretado por Tim Robbins. Ainda assim, o fato de os personagens de Altman sempre se decomporem em prol de um meio que os demanda, também acontece aqui. Nesse caso, esse meio é a própria indústria hollywoodiana de Cinema e toda a mitologia que a envolve. Mill é um dos executivos de uma importante produtora, é o responsável por escolher as ideias que dariam bons filmes. Seu trabalho requer uma grande quantia de paciência, já que passa o dia recebendo ligações com, quase na totalidade das vezes, ideias absurdas, como, por exemplo, a continuação de A Primeira Noite de um Homem. Portanto, faz parte das funções de Mill a negação de inúmeras histórias que chegam às suas mãos.
A cena de apresentação de Mill e seu meio talvez seja a mais comentada e conhecida do filme, isso porque faz menção e homenageia o clássico do Cinema Noir A Marca da Maldade (1958), de Orson Welles. Um plano sequência de quase dez minutos mostra a chegada do executivo ao estúdio e em pouco tempo já sabemos de suas funções e demandas. Somos também apresentados aos outros personagens que compõem o caos montado por Altman, desde a então namorada de Mill, Bonnie (Cynthia Stevenson), que é analista de roteiros, o responsável pela segurança, Walter (Fred Ward), e Jimmy (Paul Hewitt), o entregador de correspondências. Todas essas histórias individualizadas se cruzam casualmente. Walter é um dos personagens mais importantes, e que discutiremos mais a seguir, mas, por enquanto, vale dizer que na primeira cena ele se mostra um conhecedor do Cinema e, inclusive, cita o plano de abertura de A Marca da Maldade, reproduzido aqui por Altman, comentando o quanto hoje em dia, 1992, os filmes são feitos como clipes da MTV, com muitos cortes.
O comentário de Walter faz todo sentido com relação ao todo do filme, visto que trata justamente desse conflito entre o “velho” e o “novo” Cinema. Como resultado do primeiro plano, descobrimos um cartão postal (uma foto de um filme clássico) com uma mensagem ameaçadora endereçada a Griffin Mill, que chega pelas mãos do entregador Jimmy. A ameaça parece surtir pouco efeito imediato em Mill, que age normalmente e faz planos para o final de semana com a namorada. Basta termos um pouquinho mais de atenção à belíssima atuação de Tim Robbins e saberemos que essa despreocupação é falsa. A graduação colocada por Robbins no personagem faz com que percebamos claramente o incômodo crescente à medida que os postais ameaçadores aumentam.
Griffin Mill, cada vez mais pressionado, não só pelas cartas que vem recebendo, mas por seu emprego que está na corda bamba devido aos fracassos de suas últimas produções, resolve descobrir que é que o está ameaçando. Analisando uma lista de roteiristas que foram rejeitados por ele, chega a um nome que lhe parece certeiro: David Kahane, interpretado, também com muita habilidade, por Vincent D’Onofrio. Tamanha é sua paranoia e medo que Mill vai até a casa de Kahane para tirar a história a limpo. Lá apenas encontra a namorada do roteirista, June Gudmundsdottir (Greta Scacchi) com a qual conversa brevemente pelo telefone enquanto a observa sorrateiramente pela janela da casa. Altman estabelece um outro encontro casual que vai render um novo “improviso” à narrativa do filme.
Descobrindo que Kahane não estava em casa, mas sim no cinema assistindo ao clássico (note novamente a presença do “velho” Cinema) Ladrões de Bicicleta (1948), Mill resolve ir até lá forjar um encontro com o roteirista e, de acordo com ele próprio, seu intimidador. Quando finalmente se encontram e vão até um bar para conversarem, vemos que o roteirista não vai perdoar o produtor pela rejeição. Kahane denuncia o caráter industrial do Cinema e o quanto os produtores se vendem ao mercado. Mill entra em discussão com ele e, no estacionamento atrás da sala de cinema em que estavam, acabam brigando. Mill pede para que Kahane pare com os postais, mas o roteirista parece não saber do que se trata. É quando, sem querer, o roteirista derruba o produtor em um corredor. Prontamente ele percebe o erro e vai ajudar Mill a se levantar. Então, acontece a grande reviravolta, ou a presença do “acaso” para unir todas as histórias e inserir muitas outras na vida de Griffin Mill: revoltado, ele acaba matando Kahane em uma poça d’água. A partir daqui a estrutura do jazz “altmaniano” se estabelece totalmente.
O trabalho de Robert Altman e toda sua equipe, principalmente no design de produção (Stephen Altman e Ken Kaufman), na fotografia (Jean Lepine) e toda a equipe de som (imagino o quanto deve ser difícil dar conta de tantos diálogos simultâneos), são tão minuciosos, que cada plano tem um elemento que reforça a embate entre o cinema “velho” e o “novo”. Há uma metalinguagem genial que faz fundir o filme que estamos vendo com o “fazer” do próprio filme (e de todos os filmes industriais). Quando Mill assassina Kahane, ao passar em frente ao cinema em que era exibido Ladrões de Bicicleta, o emblemático Cinema Rialto, as luzes se apagam. O diálogo que teve ao telefone com June sobre um “rio vermelho” reaparece na fotografia que deixa a poça d’água em que Kahane fora morto em um tom avermelhado. Os pôsteres que ornamentam as paredes do estúdio de Cinema falam sobre os estados de espírito do personagem principal, como o Highly Dangerous (Missão nos Balcãs, filme de 1950, em português) que aparece quando ele recebe as primeiras cartas ameaçadoras.
Agora o executivo Griffin Mill tem que conviver com a culpa que o corrói. Cabe comentarmos, novamente, sobre o personagem do segurança Walter. Quando Mill chega para trabalhar no dia seguinte ao crime, inexplicavelmente Walter já sabe de toda a história: sabe que Mill foi ao encontro de Kahane e acabou o matando. Seu interesse não é chantagear o produtor ou entregá-lo para a polícia, mas sim fazer seu papel: proteger o estúdio e aqueles que trabalham dentro dele. Como poderia Walter saber de todo o ocorrido? Bom, ele é detentor de uma visão onipresente que se equivale à nossa como espectador. Não seria a função do espectador defender o Cinema? Altman e seu roteirista, Michael Tolkin, também autor do livro que inspira o filme, brincam com a própria mídia cinematográfica.
A referência constante a filmes clássicos, a presença de atores e celebridades já consolidadas e a frase citada por Walter no começo do filme comparando o “velho” e o “novo” cinema à lá MTV resulta na completa fusão: o filme que vemos e o filme sendo feito. Robert Altman tem um apego ao clássico, assim como Kahane, mas pressente a chegada de uma nova forma de Cinema (que talvez hoje chamaríamos de “forma Tik Tok”?). A que serviço está o Cinema? O que fazemos com as memórias do que já foi feito? Doamos, como fez o estúdio de Mill, em prol de uma novidade porvir? A genialidade de Altman não está apenas na estrutura que propõe, mas na audácia de falar sobre o próprio fazer dos filmes e elevar isso a um grau de ironia que inclui a si próprio e a todos os outros da indústria.
As novas situações instauradas pelo meio à narrativa fazem com que nasça uma nova personalidade em Griffin Mill (talvez uma abertura ao “novo” Cinema?). Novamente, a graduação da atuação de Robbins chega ao limite na cena do interrogatório policial. O filme se torna absurdo à medida que é demandado pelo meio. Somente um absurdo daria conta de ligar as histórias que vemos. Temos o jazz de Robert Altman, que, partindo de uma base sólida, o suspense da ameaça, perambula entre os meandros do Cinema e retorna para seu ato final. Mill abandona Bonnie para se juntar à viúva June, a polícia que o investigava pelo assassinato de Kahane não consegue juntar provas contra ele, seu emprego cambaleante agora o faz novo diretor do estúdio. Um deus ex-machina aparece para modelar o ritmo do jazz, porque é isso que parece ser interessante no Cinema atual.
O retorno à batida está no ato final do filme. Quando tudo se mistura no absurdo, as cartas ameaçadoras reaparecem, agora por um telefonema. Um roteirista está no estúdio pronto para falar com Mill e apresenta-lhe a história genial de seu roteiro: um produtor de cinema que acaba assassinando um roteirista frustrado por pensar que ele estava o ameaçando, mas na realidade não era o pobre coitado; até que surge o real intimidador para chantageá-lo e exigir a produção de seu roteiro. É assim que funciona o Cinema? Parece que sim. O Jogador é um jazz de Robert Altman em uma nota diferente, um ritornelo do Cinema para o Cinema.