Mato Seco em Chamas | 2022
O Matriarcado revolucionário e político no cinema híbrido de Adirley Queirós e Joana Pimenta
“Não foi à toa que meu pai me deu o nome de Joana D’arc tá ligado?
e o apelido de Chitara”
O cinema brasileiro, esse que é geralmente consumido somente em sua superfície pela grande maioria dos espectadores, onde com alguma frequência nos deparamos com caricaturas de problemas estruturais e enraizados, é comum vermos a representação do pobre, do preto marginalizado, da violência periférica da favela e tantas outras, retratadas de forma controversa nas salas de cinema. Filmes como Cidade de Deus, Medida Provisória, Tropa de Elite e o recente Regra 34 (leia a crítica aqui), exploram símbolos, levantam bandeiras, mas acabam tratando a violência, o preconceito, o feminismo e até mesmo o ativismo político de esquerda quase como um produto embalado, a fim de ser mais acessível para a indústria e pela forma como ela nos faz consumir cinema nacional hoje.
Olhar para os lados e enxergar o Brasil para além do que a grande mídia mostra, traz um incômodo (necessário) ao ver a exploração superficial da imagem do país, muitas vezes usando de um sensacionalismo barato e caricato, no cinema. Em Mato Seco em Chamas, Adirley Queirós e Joana Pimenta têm o ângulo de visão corajoso e comprometido o suficiente para fazer um filme genuíno e que não está interessado em ficar boiando nessa superfície. O longa trata de problemas e questões do Brasil vistas de dentro pra fora de forma legítima, imerso em uma realidade distópica pela ótica semi-documental dos diretores.
Adirley é um diretor que vem de um cinema de resistência e, principalmente, de arquivamento, que está entrelaçado com sua própria história. O seu trabalho passou por locais como o Lincoln Center, Museu da Imagem em Movimento, ICA Londres, Pacific Film Archive, para além de aparecer em publicações como a Artforum, Cinemascope e Cahiers du Cinéma.
Ele migrou de Goiás para o Distrito Federal ainda criança, quando sua família passou por um processo de desapropriação de terras. Logo, devo citar aqui o excelente A Cidade é uma só? (2011), – documentário que trata do processo de esvaziamento de comunidades periféricas que viviam em ocupações irregulares quando Brasília se tornou a capital do Brasil –, mostrando o surgimento da cidade-satélite de Ceilândia (onde Ardiley vive), que é na verdade uma Região Administrativa que foi criada para abrigar todo o povo realocado na “Campanha de Erradicação das Invasões” e que, inclusive, tem em suas primeiras letras (CEI) fonte originária de seu nome: CEILÂNDIA. Uma cidade inventada, que contribui para o apagamento histórico de uma comunidade através de um “acolhimento” coercitivo do Estado, e que vai totalmente em via contrária à proposta preservacionista e documental que o cinema de Adirley propõe.
Dito isto, Adirley e Joana fizeram de Brasília também berço de Mato Seco em Chamas. Joana Pimenta é uma realizadora portuguesa que vive entre Portugal e Brasil, é artista visual e doutora em cinema por Harvard, já trabalhou em parceria com Ardiley assinando a fotografia de “Era Uma Vez em Brasília”. Tem experiência com documentários, mas é a primeira vez que co-assina a direção de um longa-metragem. Seu último curta experimental, “Um Campo de Aviação” (2014), também traz imagens de Brasília e teve a sua estreia no 69º Festival de Cinema de Locarno, foi exibido no Festival Internacional de Cinema de Toronto, Festival de Cinema de Nova Iorque, Rotterdam, entre outros.
No longa, estamos em uma realidade explicitamente fantástica, que nos submerge e nos suja completamente ao universo diegético por um grande período de tempo. Mesmo que ele se revele menos obviamente documental do que em A Cidade é uma só?, onde em dado momento, acompanhamos um candidato fictício em busca de votos de maneira independente, mas também temos um cruzamento com a passagem da comitiva real da eleição de Dilma Rousseff, que nos faz observar o choque do aparato político de uma grande campanha versus a do “faça você mesmo”, tudo em meio a muitos depoimentos reais fragmentados de forma mais expositiva. Mato Seco em Chamas também documenta, mas esse interesse híbrido que Adirley e Joana mostram aqui, se faz bem mais sutilmente entranhado na narrativa no decorrer de sua longa duração (2h30min) do que em A Cidade é uma só?. A falta de pressa em cada cena, em cada “depoimento” e seu interesse genuíno por cada personagem, contribuem para uma imersão ficcional mais poderosa.
Contrariando um pouco a forma como se faz cinema contemporâneo, – que passa apressadamente pelos detalhes e sente muita pressa em evidenciar sua mensagem – Queirós e Pimenta fazem questão de gastar tempo para explorar universos particulares, que vão fazer com que compreendamos os personagens sem que eles precisem nos explicar quem são por meio de diálogos obviamente ensaiados; em cenas com planos longos como o que adentra um culto evangélico, uma festa funk dentro do ônibus em movimento, o show de brega do “Muleka 100 Calcinha” (grupo de forró que toca a música que dá título ao filme) e um uma conversa na cozinha quando as duas irmãs relembram sua infância, sua família, sua religiosidade, tomando um café bem demorado em plano médio.
Temos um grupo de mulheres liderado por Chitara na comunidade do Sol Nascente, região que fazia parte da Ceilândia e foi desmembrada. Chitara encontra petróleo, monta seu próprio esquema de extração e comercializa gasolina fazendo distribuição por meio de motoboys, todos homens. Em Mato Seco em Chamas quase não se vê figuras masculinas, é como uma ditadura matriarcal revolucionária: quem manda, empunha as armas, provê e profere palavras de ordem são as mulheres; no decorrer do longa vamos nos acostumando com essa hierarquia invertida à realidade patriarcal, cercados por mulheres extremamente fortes e perigosas. Uma bandeira feminista poderosa é erguida aqui e através dessa regra distópica vigente, ela soa tão natural que não sobra espaço para muitos questionamentos. Mulheres guerrilheiras, gasolineiras, lésbicas, mães solteiras, sem estereótipos, sem frases de efeito, contando sua própria história e comandando um bang-bang de faroeste hostil na Capital do Brasil.
Ao lado de Chitara, que na verdade se chama Joana Darc, estão Léa e Andreia, e a fotografia do filme as mostra quase sempre em primeiríssimos planos, com suas cicatrizes, dentes faltando, marcas de expressão, um retrato cru, sem maquiagem, sempre acompanhadas de um interminável cigarro aceso, enfatizando a importância no registro de pessoas reais. Léa é uma ex-presidiária que deixou a cadeia recentemente e cuida da segurança ao lado de sua irmã Chitara, Andreia ajuda na extração de petróleo e é uma ativista política que defende a comunidade carcerária do Sol Nascente. Ela é candidata pelo PPP (Partido do Povo Preso) e luta pelos direitos das mulheres presas e contra o toque de recolher. Nesse momento o filme faz crítica ao sistema carcerário e também à toda situação de marginalidade e miséria que leva mulheres a cometerem crimes para sustentar suas famílias, crimes esses mais leves e não violentos, como tráfico, assaltos e pequenos furtos.
Em torno da metade do filme, temos uma ruptura definitiva que mostra como Adirley faz seu cinema ajustado a uma linha temporal que faz questão de se afinar com as mudanças no cenário político brasileiro. Se em A Cidade é uma só? temos o contexto da eleição de Dilma Rousseff, em Mato Seco em Chamas toda a narrativa é interrompida por um plano sequência aterrorizante de um festejo organizado por bolsonaristas comemorando o resultado das eleições de 2019. Com frases como “Lula já morreu”, selfies sorridentes, bandeiras do Brasil e toda aquela caricatura – um dos raros momentos realmente caricatos do filme, naturalmente retratado – dos fantoches políticos seguidores de Jair Messias Bolsonaro. De longe, do alto da torre de vigia no Sol Nascente/Ceilândia, Léa e Chitara observam os fogos de artifício das comemorações à distância no Plano Piloto. Dessa vez em plano bem aberto, a câmera nos faz notar que Brasília não é uma só, e o espaço ajuda a separar muito bem essas duas realidades.
Há uma cena em que militares se aproximam da comunidade do Sol Nascente num furgão para uma operação de choque contra a facção de Chitara, – na única cena protagonizada por homens em todo o filme – eles ensaiam suas frases de ordem, frases essas que ouvimos muitas vezes repetidas na TV por Bolsonaro, uma imagem que todo brasileiro vai imediatamente recordar. No furgão fechado, em movimento, num clima de doutrinação, como numa preparação para o combate, eles ouvem em alto e bom som “A Montanha” de Roberto Carlos, cantor que fez diversos afagos a ditadura militar e que homenageou o ex-juiz Sérgio Moro e o ex-Presidente Jair Bolsonaro em show em Curitiba. Adirley não podia ser mais cirúrgico aqui e em contraponto, quando por fim o furgão é abatido e desmontado pelo pessoal do Sol Nascente, eles estão ouvindo baixo e cheio de ruídos o Rap “De Herói a Bandido” do grupo Voz Sem Medo de Brazlândia, periferia do Distrito Federal.
“Será que mereço surras por nada
“De Herói a Bandido” – Voz Sem Medo
Porrada na cara
Castigo mal dado
Sempre dado na hora errada
Tratado com diferença
O tempo passa o ódio aumenta
Subiu pra cabeça”
A violência em Mato Seco em Chamas não é explícita, como em Bacurau, por exemplo. Aqui a violência é implícita e inerente como meio de resistência e de sobrevivência legítimas. Há tiros secos, pequenas luzes no escuro, incêndios, sons de helicópteros, ruídos e muitos vestígios, mas o confronto fica no extra-campo e isso basta. Basta para sangrar o sangue retirado da tela, deixado de lado e posto nas mãos de quem os derramou sem precisar nos trazer traumas visuais violentos. Parece um novo jeito de se fazer cinema no Brasil, um aperfeiçoamento do que os longas anteriores de Adirley já indicavam, agora mais poderoso e imersivo, misturando mais ficção com recortes cruciais da realidade contemporânea do país.
Filme assistido via cabine de imprensa pela Vitrine Filmes e Sinny Assessoria