Um Filho | 2022

Um Filho | 2022

O cinema, ao mesmo tempo que é um meio infinito de contação de histórias e experimentação da linguagem, pode ser um terreno perigoso se não tratar determinadas temáticas, quando as propõe, com o cuidado necessário. Florian Zeller, que magistralmente dirigiu e roteirizou Meu Pai, longa que em 2021 deu a Anthony Hopkins o Oscar de Melhor Ator e ainda recebeu o prêmio de Melhor Roteiro Adaptado, com seu novo trabalho Um Filho, busca um aprofundamento das relações familiares que permeiam moléstias comprometedoras do comportamento e saúde mental humanos, como o Alzheimer, no caso de “Meu Pai”, e a depressão, no caso de “Um Filho”.

O interesse do diretor pelas relações familiares, além de notoriamente criar um elo entre suas obras, reside principalmente na figura paterna/masculina dessas estruturas. Essa ligação pretendida, contudo, aqui falou muito mais em seu desfavor. Primeiro, porque o espectador de “Meu Pai”, filme todo estruturado à reprodução da mente humana adoecida e presa em si, busca em “Um Filho” algum traço da mesma proeza do diretor – e será frustrado. Ainda, porque lançá-los de forma tão sequencial pode soar muito como uma ausência de ideias, o que parece, infelizmente, ser o caso.

Um Filho nos insere na vida de Peter (Hugh Jackman), um executivo de sucesso, a partir, inicialmente, de sua esposa, Beth (Vanessa Kirby), que cuida do filho recém-nascido do casal. O papel paterno aqui é bem direcionado: dar uma “passadinha” no quarto da criança para verificar se tudo vai bem. A estabilidade confortável da vida de Peter é interrompida com a visita surpresa (e indesejada) de sua ex-esposa, Kate (Laura Dern), pedindo ajuda para lidar com o filho adolescente tido desse relacionamento passado, Nicholas (Zen McGrath), que simplesmente parou de frequentar a escola e vem agindo de forma estranha.

Sendo a presença paterna solicitada, Peter busca dialogar com o filho, sendo surpreendido quando o garoto pede para morar com o pai e seu “irmãozinho”. Então, Nicholas passa a residir com o pai, revelando-se um adolescente bastante infeliz, desorientado, perturbado, em constante sofrimento, que sente a rejeição dos pais que não sabem lidar com ele, e que parecem não enxergar (propositalmente ou não) que a infelicidade do filho possui uma causa muito mais profunda que a fase da adolescência: Nicholas é depressivo e pratica automutilação como forma de aliviar seu sofrimento.

Veja-se que tratar da depressão através do cinema já é uma tarefa que merece, minimamente, um zelo e um aprofundamento profissional muito específico, pois o cinema é uma arte acessível que pode despertar gatilhos de naturezas diversas. Tratar da depressão adolescente com tendências suicidas exige um tratamento ainda mais delicado por parte do cineasta. Zeller parece ter perdido a sensibilidade nesse cuidado no presente longa, o que é extremamente perigoso.

A densidade do filme já é própria de sua proposta. Um Filho carece de vida em toda sua estrutura. A cor azul é uma constante, seja nos figurinos principalmente de Peter e Nicholas, no apartamento paterno, seja na forma como o longa foi fotografado, remetendo a uma frieza e tristeza permanentes. A própria figura carismática e otimista de Hugh Jackman parece não pertencer àquele lugar. A ambientação totalmente urbana e empresarial (na maior parte do longa Peter participa de reuniões em prédios imponentes e higiênicos) também favorece a criação de uma atmosfera letárgica.

Enquanto essa ausência de vida e a escalação de Hugh Jackman como contraponto podem ser um mérito do filme, pois a intenção do diretor é gritante, por outro lado, a carência que incomoda é a criativa. Tudo é muito pouco inventivo, pouco dinâmico e preguiçoso. É inevitável que comparações com seu longa anterior sejam feitas e expectativas sejam criadas. Enquanto em “Meu Pai” os elementos do filme conversam entre si e enriquecem sobremaneira a narrativa, aqui eles soam aleatórios e sem nada a dizer. Há muito apelo ao melodrama gratuito, o roteiro caminha sempre para o óbvio, o que prejudica, inclusive, as atuações do filme, tão recheado de artistas renomados desperdiçados.

Há muitos filhos que o longa busca nos mostrar, e não apenas um, como sugere o título em português. O filho mais óbvio seria Nicholas. O filho que interessa mais ao filme, porém, é o do personagem de Hugh Jackman. É interessante o ciclo geracional que Zeller busca trilhar entre os personagens, e é aqui que rapidamente entra Anthony Hopkins, que interpreta o pai de Peter: o abandono afetivo do pai de Peter reflete no sofrido por Nicholas, pois nos parece que há um ciclo vicioso de abandonos paternos. De fato, esse ciclo é muito real e continua reverberando quando não se toma consciência dele.

A ideia que o filme parece querer mostrar é a tentativa de quebra desse ciclo por parte de Peter, que por óbvio, se vê reproduzindo o comportamento que sofreu do pai. O longa, porém, frustra ao deixar o personagem tornar-se subitamente um “paizão”, e a caracterização de Hugh Jackman colabora para essa imagem. Essa tendência leva ao abandono e beira ao desrespeito pelas personagens mães do filme, Beth e Kate, muito embora tente mostrar um certo esforço para evitar que isso aconteça. O cinema, uma vez mais, invisibiliza mulheres que se desdobram em jornadas duplas em prol dos serviços domésticos e da criação dos filhos, para que seus maridos possam participar com tranquilidade de reuniões que parecem nunca terminar. Compreende-se que o foco do filme não são as mães. Mas não invisibilizá-las é importante para que outros ciclos sociais, como o do machismo estrutural, sejam quebrados.

O problema maior do filme, porém, é a crueldade com que ele trata Nicholas e a doença que ele enfrenta. Zeller é eficaz em mostrar o isolamento cada vez maior do personagem, e a falta de compreensão dos pais ante o comportamento do filho. Nicholas fala ao pai o que ele quer ouvir, sem que haja, de fato, qualquer mudança em seu sofrimento, e Hugh Jackman exala um otimismo inseguro quando quer acreditar que está tudo bem. Considerando que o filho primário que o longa quer tratar é Nicholas, a ausência de cenas exclusivas com o adolescente desfavorece a pretensão do longa. Por certo, podem servir para refletir o distanciamento do personagem, mas considerando a delicadeza e o cuidado merecido pela depressão, esse afastamento do personagem não parece justo.

É perigoso como Zeller parece, inclusive, tratar a depressão não como uma doença, mas como reflexo de uma culpa materna e paterna ocasionada pelo divórcio. Os caminhos que a narrativa toma em seu desfecho aumentam ainda mais a sensação de culpa dos pais pelo sofrimento de seu filho. Parece haver uma fome de realismo nas situações do filme que o tornam bastante irresponsável.

É triste que o potencial do diretor tenha se limitado à sua obra oscarizada (espera-se que haja uma redenção em seus próximos filmes). Por fim, a densidade da temática parece apenas um pretexto para mostrar os extremos das relações familiares em prol do apelo dramático e para fazer surgir grandes atuações que o roteiro não permite que ocorram, o que se mostra um tanto insensato.

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