Raquel 1:1 | 2022

Raquel 1:1 | 2022

A juventude questionadora e feminista no suspense cheio de vestígios de Mariana Barros

Fé e religiosidade são temas que mexem com a cabeça de muita gente e que encontram no cinema um lugar especial. O terror e o drama sempre abrigaram muito bem essas questões, desde em histórias de possessão com exorcismos assustadores e fanatismo religioso como no clássico “O Exorcista (1973)” e em “Saint Maud (2019)” até nas de questionamento da palavra cristã, subversão da fé e descrença, como em “Fé Corrompida (2017)”, “Corpus Christi (2019)”, “O Sétimo Selo (1957)” e tantos outros. Mas ao contrário de Ingmar Bergman, por exemplo, diretor que muito abordava acerca da perda da fé em Deus, Mariana Barros, em seu segundo longa, traz uma visão antipatriarcal da Bíblia e questiona a retidão das escrituras sagradas, mas sem perder a fé, em Raquel 1:1.

Barros foca em um universo juvenil, com um núcleo de personagens principais de meninas em idade escolar, mas faz um filme extremamente sóbrio e obscuro. Raquel 1:1 flerta bastante com outro recente filme brasileiro, o “Medusa (2021)” de Anitta Rocha da Silveira, que faz uma alegoria jovem e feminista, também ligada diretamente a questões religiosas. Em Medusa, o horror é mais explícito e a mensagem bastante clara, já no longa de Barros, vemos muitos subtextos na trama que geram tensão e medo sem que ela precise contar o bê a bá ao espectador. É um filme que trabalha muito bem com vestígios e rastros. Vestígios de lembranças, medos e acontecimentos.

Raquel 1:1 narra a história da jovem Raquel, interpretada por Valentina Herszage – que também protagonizou o primeiro longa de Anitta da Silveira, “Mate-me Por Favor (2015)” –, que ao chegar a uma pequena cidade do interior acompanhada de seu pai, Hermes (Emílio de Mello), é recepcionada e faz amizade com outras meninas locais que são de um núcleo de estudos da igreja. Raquel e Hermes se mudam para a cidadezinha a fim de recomeçar a vida, uma vida marcada por um trauma familiar que faz com que eles voltem a habitar a velha casa do avô de Raquel. 

Ao chegarem na nova cidade, pai e filha oferecem uma confraternização de boa vizinhança e convidam alguns moradores para um almoço no quintal de casa. Hermes é dono de uma mercearia e acha que isso também pode ser bom para os negócios que andam mal.  Durante esse almoço, Raquel socializa com as meninas da igreja e logo vestígios sonoros de uma lembrança perturbadora invadem a cena como uma interferência, em uma frequência que só Raquel pode ouvir; choros, gritos, batidas, pedidos de ajuda. Ela se sente atordoada e corre até o banheiro para se acalmar. Barros dispensa os flashbacks visuais e preenche as lacunas da história com artifícios interessantes como este ao longo do filme, para que possamos entender um pouco do passado conturbado da dupla. 

Após alguns encontros com as amigas da igreja em rodas de estudos bíblicos, surgem divergências acerca do que está escrito em relação às mulheres na Bíblia. Raquel questiona as escrituras feitas por homens e que foram por vezes reescritas, porque não então escrevê-las novamente agora, na pós-modernidade? É um pensamento legitimado pelo empoderamento feminino nas últimas décadas e que de forma alguma poderia ser introduzido antigamente, dá uma boa sensação poder refletir sobre isso agora. Dessa forma, Barros explora o assunto com elegância, recorrendo poucas vezes a saídas fáceis, pois embora muitos diálogos tragam textos diretos e explícitos – como na roda de conversa das meninas – o filme ainda apresenta camadas de subjetividade interessantes. 

Valentina Herszage interpreta a protagonista Raquel no novo longa de Mariana Barros
Valentina Herszage interpreta Raquel no novo longa de Mariana Barros

Raquel passa por uma experiência inexplicável ao entrar em uma caverna escura que encontrou enquanto caminhava sozinha pelos arredores da cidade, cheios de árvores e mata quase fechada. A partir desse momento ela começa a receber sinais e chamados, o que a faz criar a própria célula para a renovação das escrituras bíblicas com meninas que concordaram com ela. Quando Raquel consegue conquistar a maioria para lhe ajudar em sua missão, ela passa a ser mal vista por todos e hostilizada quase como uma Joana d’Arc, em uma caça às bruxas prestes a ser queimada na fogueira pelos conservadores religiosos da cidadezinha. 

A direção opta por um certo minimalismo estilístico, com uma fotografia e design de som que trazem peso e densidade à obra. O uso de alto contraste nas cenas e diversos momentos de pouquíssima iluminação – quase sempre em tons frios –, com pontos de luz precisos e eficientes, fazem do longa uma experiência verdadeiramente sombria. O filme cria alguns momentos visuais que referenciam o clássico “Carrie, A Estranha (1976)”, adaptação da obra de Stephen King. Cenas de bullying, humilhação pública, entre outras homenagens em contextos que pegam muito bem em Raquel 1:1.

Fugindo de uma narrativa óbvia e trabalhando com signos de mistério bem articulados, Raquel 1:1 traz uma história obscura de amadurecimento feminino unida a um pensamento feminista questionador e progressista de uma protagonista que luta contra traumas de um passado recente. Barros faz isso através do questionamento de Raquel a assuntos particulares à Bíblia, à salvação, à função da mulher no mundo e pelos laços de união que se formam entre o grupo de jovens começando a redescobrir sentidos na fé e nas palavras que cresceram aprendendo a escutar e a repetir. A diretora opta por um final mais seguro do que apocalíptico, mas consegue chegar a um bom clímax, sem matar a todos como Carrie, mas queimando tudo por dentro com Raquel.

Nota

Filme assistido via cabine de imprensa e distribuído pela O2 Play Filmes

Author

  • Mari Dertoni

    Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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