A24 em 10 Filmes
É quase inevitável pensarmos no Cinema e o associarmos à Hollywood. O tempo e o capital criaram nesse espaço uma “aura mágica”, uma cidade dos sonhos, como diria David Lynch. Os filmes estadunidenses aumentaram sua escala drasticamente, assumindo o protagonismo mundial. Foi lá que nasceram as grandes produtoras, a grande máquina industrial. Universal Pictures, Walt Disney, Warner Bros., Paramount e Columbia são nomes que todo cinéfilo deve ter gravado em si. Entre as décadas de 1920 e 1960, Hollywood foi o centro das atenções na Sétima Arte. Nos tapetes vermelhos desfilavam grandes celebridades. Nomes de diretores, roteiristas e produtores foram consolidados e permanecem até hoje. Esses estúdios enriqueceram e ficaram conhecidos como o big five, os cinco maiores do Cinema, revolucionaram a forma de fazer filme, exploraram e reforçaram a indústria cultural. Se essa revolução foi benéfica ou não é uma questão para outro texto.
Fato é que, agora, um outro momento parece surgir. O cenário cinematográfico está se abrindo para um espaço que não é mais Hollywood. O Cinema independente sempre existiu e continuará existindo, o que acontece é que estamos presenciando uma ruptura com o monopólio hollywoodiano, onde esse tipo de filme tem ganhado espaço e, inclusive, superado grandes produções. O maior exemplo é a produtora e distribuidora A24, que, em comparação com o big five, é muitas vezes menor, mas, basta olharmos para as premiações e, principalmente, para a popularidade de suas produções, que veremos seu inegável sucesso. Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo venceu sete prêmios da Academia em 2023, desbancando Avatar: Caminho das Águas e Top Gun: Maverick. Filmes com orçamentos muito menores, com lucros que nem chegam perto dos grandes, caíram no gosto popular e tomaram as redes de streamings, além de conquistarem os grandes prêmios do Cinema.
A A24 nasceu em 2012 com o objetivo de fugir da grande indústria hollywoodiana e dar espaço a um tipo de filme muito mais livre e sem as pretensões exorbitantes dos estúdios consolidados. A empresa se instala em Nova York e começa como uma distribuidora, comprando direitos de filmes “menores”, às margens do padrão hollywoodiano. As Loucuras de Charlie (2013) é o ponto de partida, dirigido por Roman Coppola, que, apesar do sobrenome, nunca teve espaço nos grandes estúdios. O primeiro sinal de sucesso acontece pouco depois com Spring Breakers: Garotas Perigosas (2013), do polêmico Harmony Korine. A ideia era abrir espaço para diretores e diretoras iniciantes, que trabalhassem histórias mais “simples”, gêneros que tinham pouco espaço, e, claro, baixo orçamento. A partir de 2016, a A24 se assume como produtora e já toma frente na mídia. O fatídico dia de uma das maiores gafes da história do Oscar, quando os produtores, diretor e elenco de La La Land tiveram que descer do palco e entregar a estatueta de melhor filme para Moonlight, foi a consolidação da A24. O primeiro filme produzido por eles foi eleito o melhor pela premiação mais famosa do Cinema.
Hoje, podemos dizer que a A24 está consolidada. Mais prêmios vieram, mais filmes que despontaram nos streamings, mais popularidade. Os cinéfilos mais novos talvez tenham começado a gostar de Cinema pelas mãos da produtora. Novos cineastas ganharam reconhecimento, como Ari Aster (Hereditário e Midsommar) e Robert Eggers (A Bruxa e O Farol); gêneros foram resgatados, como em X – A Marca do Mal e Pearl. A A24 ganhou um status de “estilo de filme”, uma marca autoral, uma diversidade que logo reconhecemos como o resultado da produtora e de sua forma de ver o mercado cinematográfico.
Impulsionados por esse sucesso meteórico e pela recente premiação de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, resolvemos criar uma lista com grandes títulos que receberam o selo A24. Dentre os quase 150 títulos da produtora, escolhemos 10 bons filmes para você conhecer ou expandir sua relação com a A24. Nosso critério não é hierárquico, mas sugestivo. Pensamos em obras que não tiveram o mesmo reconhecimento das outras já citadas no texto, que não são tão lembradas, mas que, ainda assim, são tão boas, ou até melhores, do que as mais conhecidas. Vemos aqui um importante movimento do Cinema que dá vez à temas, cineastas, atores e atrizes, roteiristas, pessoas que, por serem excluídas da grande indústria cultural, tiveram menos chances.
BLING RING: A GANGUE DE HOLLYWOOD | Sofia Coppola | 2013
Considerado um dos “filmes menores” de Sofia Coppola, Bling Ring: A Gangue de Hollywood, pelo contrário, é uma de suas obras mais eficientes. Inspirado em fatos reais registrados em artigo na revista Vanity Fair por Nancy Jo Sales, o filme teve seus direitos de distribuição adquiridos e foi um dos primeiros a compor o catálogo da A24. Trata-se do caso de jovens bandidos que invadiam mansões e levavam pertences de famosos nas ruas mais badaladas de Hollywood, entre 2008 e 2009, fazendo vítimas como Paris Hilton, Orlando Bloom e Lindsay Lohan.
A matéria-prima que Coppola extrai dessa história para criar seu filme é a futilidade humana. Seu grande mérito é construir uma narrativa irônica que beira a comédia absurda, quando, por exemplo, vemos a reação da mídia quando os bandidos são revelados. Como todos eles são brancos e de classe alta, automaticamente se tornam celebridades e despertam o interesse de revistas e canais de televisão. Antes disso, é risível a forma como os adolescentes praticam seus crimes puramente por seus próprios caprichos. Os adolescentes estão absorvidos pelo mundo da fama, consomem as imagens mitológicas das celebridades, precisam de seus objetos, de um pouco de suas vidas, de seu luxo.
A forma como Coppola conduz seu filme faz jus à tolice dos personagens. Não se trata de um adjetivo negativo nesse caso, já que a diretora o faz proposital e acertadamente. Alguns exageros são permitidos para criar uma sensação de nojo no espectador. A atuação de Emma Watson, famosa pela saga Harry Potter, é digna de todos os louvores. Sua personagem, Nicki, é uma das principais da gangue. Apesar de não ser exatamente a articuladora dos atos, ela é a exemplificação daquela juventude rica, branca e vazia dos Estados Unidos. Watson cria trejeitos para sua personagem que reforçam a banalidade dos crimes. Os planos longos e a câmera por vezes “passiva” diante dos personagens tornam tudo ainda mais absurdo. Toda essa leviandade humana nos é jogada no rosto, para então reconhecermos a condição do mundo moderno, da era tecnológica, mas também as relações descartáveis, a nossa estranheza e frivolidade.
Bling Ring – A Gangue de Hollywood está no catálogo da HBO Max e merece muito ser assistido. Se interessando pelo caso retratado por Coppola, você também pode assistir uma minissérie documental com três episódios sobre os crimes cometidos pelos jovens bandidos, Bling Ring: A História por Trás dos Roubos, na Netflix.
Assista ao trailer do filme aqui.
HIGH LIFE | Claire Denis | 2019
A A24 assumiu a produção do primeiro filme americano e também a primeira ficção científica da diretora Claire Denis. Um conjunto de fatores são suficientes para distanciar High Life dos filmes do gênero típicos: o olhar cinematográfico de Denis, muito mais interessada nas relações humanas do que na ciência em si, e a produtora que, por sua própria origem, é questionadora das convenções.
High Life trabalha com uma narrativa não linear e desconstruída. Denis nos apresenta o personagem de Monte (Robert Pattinson), do lado externo de uma nave espacial em forma de caixote, realizando um ajuste mecânico, ao mesmo tempo em que, por um fone de ouvido, escuta e conversa com um bebê chorando de forma estridente. Em seguida, Monte retorna para o interior da nave, e é inserido num ambiente claustrofóbico, nada higiênico e muito orgânico, onde ele cuida do bebê, aparentemente os únicos habitantes daquele espaço.
Os elementos inseridos por Denis informam o espectador de que havia outras pessoas naquele local, o que as atitudes de Monte vão confirmar posteriormente. Através da desconstrução, a narrativa é temporalmente manipulada para nos apresentar os demais personagens. Todos os habitantes da nave são criminosos condenados na Terra à pena capital ou prisão perpétua, ali colocados por um programa de pesquisa científica sobre fonte de energia em buracos negros que lhes dá uma nova chance. São liderados por Dibs (Juliette Binoche), uma médica um tanto misteriosa obcecada por reprodução humana, que inicia experimentações com os demais confinados.
A primeira palavra dita pelo bebê Willow (Jessie Ross na fase adulta) é “tabu”. Essa palavra define bem as provocações que Denis insere em suas obras. O isolamento humano, o distanciamento entre os confinados em que pese a solidão, o ar de desconfiança, a culpa por seus atos criminosos, a punição, são condições que exacerbam extremos, a incluir a violência e os impulsos sexuais. Para uma diretora entusiasta do estudo do corpo, da pele e do contato humanos através da câmera, a limitação espacial mostra-se um prato cheio. A missão individual de cada personagem é a proteção de seus próprios corpos e do domínio sobre eles daquilo que o Estado (e Dibs) pretendem.
O longa possui uma áurea mística e transcendental que se reflete também em sua ambientação. Ao passo que se espera que uma nave espacial seja muito limpa e hospitalar, Denis quer sua nave decadente, com cores terrosas e mini florestas que deixam tudo muito orgânico. High Life mostra-se um filme atípico do gênero e isso, sem dúvidas, é seu ponto mais alto. Mais do que uma obra de ficção científica, é um trabalho tipicamente fruto de Claire Denis. O cinema agradece.
O Coletivo Crítico possui um artigo sobre o filme, que você pode ler aqui. High Life está disponível para aluguel nos catálogos da Apple TV e do Google Play.
Assista ao trailer do filme aqui.
SOB A PELE | Jonathan Glazer | 2013
Um filme não precisa de muitos elementos para transmitir sua mensagem. Por vezes, uma mise-en-scène minimalista é capaz de entrar em camadas muito mais profundas do que as meras parafernálias narrativas que nos habituamos a ver. O cineasta Jonathan Glazer utiliza dessa prerrogativa em Sob a Pele, um filme que fala muito pouco sobre o que é, mas, de alguma forma, nos transmite uma mensagem enigmática, e nem por isso menos poderosa.
Uma criatura alienígena assume a forma feminina, interpretada por Scarlett Johansson, e parece dominar os homens. Uma espécie de poder hipnótico faz com que alguns sirvam a seus ideais de caça, e outros virem a própria presa quando são atraídos para um beco escuro. Seus alvos sempre são homens solitários. Enquanto ainda parece aprender sobre o “ser” humano, a criatura (creditada como “a fêmea”), pilota uma van e atrai rapazes que logo serão seduzidos por ela a uma rua escura. Glazer questiona nossa percepção sobre as aparências. O corpo feminino, que representa a beleza e o objeto de desejo do masculino em nossa sociedade, esconde em si algo sob a pele, que, na verdade, nenhum dos homens parece se importar. O apego às aparências é o que os leva a submersão no mar negro da alienígena.
O ciclo de caça se repete por algumas vezes, mas sutilmente vai assumindo outra forma. A fêmea caçadora vai encontrando dificuldades para realizar sua missão. Aos poucos ela vai descobrindo o que é ser mulher nesse universo masculino. As consequências disso estão em seu desnorteamento, em sua confusão diante dos novos signos que lhe aparecem. O tratamento que recebe dos homens, a forma como olham seu corpo, revelam as condições machistas e podres da humanidade. A criatura vai perdendo sua força e passa de caçadora à presa.
Glazer tem total domínio de sua narrativa. O diretor é capaz de construir uma atmosfera assustadora, enigmática e, por isso, reflexiva. As interpretações não se fecham, pelo contrário, são abertas a inúmeras possibilidades. As imagens são estranhas, as ações não têm explicações evidentes, mas sua força é inegável. Johansson se entrega sem medo a uma atuação mais expositiva e desafiadora. As convicções da personagem vão ruindo aos poucos através do rosto da atriz.
Sob a Pele é um filme difícil, mas necessário. Um dos primeiros a entrar no catálogo da A24, o filme foi distribuído em 2014, mas acabou não recebendo tanto reconhecimento, a não ser por aquilo que ele próprio questiona: o sex symbol sobre a atriz Scarlett Johansson. Assista na HBO Max e reflita sobre essa construção masculina das aparências.
Assista ao trailer do filme aqui.
DOCINHO DA AMÉRICA | Andrea Arnold | 2016
Andrea Arnold é uma diretora de prestígio. Em 2005, ganhou o Oscar de Melhor Curta-Metragem por Wasp. Em 2021, com o documentário Cow, foi indicada ao Bafta de Melhor Documentário e ao prêmio Golden Eye do Festival de Cannes. Em 2016, dirigiu Docinho da América (American Honey), indicado à Palma de Ouro, e vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes, e que ainda assim, parece não possuir grande reconhecimento do público.
Docinho da América é um road movie que acompanha o caminho e amadurecimento de Star (Sasha Lane, em seu primeiro filme), uma garota de 18 anos presa em relacionamento abusivo, e designada a cuidar de crianças que não são seus filhos. O filme começa na sujeira, com Star e as crianças procurando comida nos lixos, e encontrando, por fim, um frango congelado inteiro. Seu caminho se cruza com uma van aparentemente em plena festa, com muitos jovens fazendo barulho e se divertindo, o que imediatamente gera identificação e interesse por parte da protagonista, e a leva a conhecer e se conectar de forma magnética com Jake (Shia LaBeouf). Jake oferece à Star uma oportunidade na estrada, dando início à jornada de busca de mudança de vida da protagonista, junto de outros jovens igualmente marginalizados, cujo trabalho é vender assinaturas de revistas pelos lugares que cruzam.
A obra exala liberdade em muitos sentidos. Em sua produção, Arnold buscou, em sua maioria, não atores. A diretora procurou um elenco de rua, captando jovens em estacionamentos, praias e canteiros de obra, e a própria Sasha Lane foi descoberta por acaso. O fascínio de Arnold por essa juventude americana pobre e marginalizada, sem perspectiva, a inspirou não só para o roteiro de Docinho da América, mas também na forma como filma livremente esses jovens e situações. Percebe-se claramente que há um realismo e uma espontaneidade na interação do elenco, que parece sempre muito à vontade no desejo pacato de ganhar algum dinheiro para sobrevivência, embebedar-se, curtir um som na estrada, se divertir, e quem sabe um dia, ser feliz num lugar tranquilo.
Docinho da América diz muito sobre o distanciamento do sonho americano da vida daqueles jovens rejeitados. A protagonista, apesar de tão golpeada pela vida e pelas pessoas, guarda uma inocência e uma pureza que a diretora reflete bem em cenas muito líricas em meio ao caos e ao barulho da juventude, cada vez que Star se esforça, por exemplo, para salvar uma abelha do afogamento ou abrir a janela para que um inseto possa voar.
Disponível no catálogo da HBO Max, Docinho da América é um filme hipnotizante, seja pelo trabalho de seu elenco tão solto, seja pela própria ideia de liberdade e fluidez que leva o filme, ainda que essa liberdade decorra da miséria e da marginalidade. Um filme sobre um país e a forma como ele trata sua juventude em meio à frustração capitalista que merece muito apreço.
Assista ao trailer do filme aqui.
EX_MACHINA: INSTINTO ARTIFICIAL | Alex Garland | 2014
Ainda no começo de sua trajetória, a A24 resolveu investir na distribuição de Ex_Machina: Instinto Artificial, do então desconhecido Alex Garland. Depois de alguns trabalhos bem sucedidos como roteirista, como a parceria com Danny Boyle em A Praia, Extermínio e Sunshine – Alerta Solar, Garland ganha sua primeira chance na direção com essa grande ficção científica, assinando também o roteiro.
O reconhecimento de Ex_Machina veio muito mais pelos efeitos especiais, ganhador do Oscar na categoria, do que propriamente pela história, o que é uma injustiça. De fato, os efeitos são perfeitos, não só como elemento isolado, mas como incremento na narrativa, nunca tomando frente do que realmente importa. A questão principal aqui é a relação de poder estabelecida em nossa era virtual. Garland antecipa os perigos da rede de informações a qual submetemos nossa vida.
Nathan, um bilionário da tecnologia, interpretado magnificamente por Oscar Isaac, convida Caleb (Domhnall Gleeson) para uma excursão em seu recluso castelo moderno. Como um deus, Nathan quer colocar em teste sua mais nova criação, Ava (Alicia Vikander), uma andróide dotada do sistema de informações mais completo do mundo. Sua construção só é possível graças a tudo que nós, humanos, colocamos de nossas próprias vidas nas redes virtuais. Assim, Ava é capaz de ser autônoma e lidar com sentimentos, reagir aos seres humanos e, consequentemente, ser uma “quase-humana”. O que a diferencia é a ausência de pele na maior parte de seu corpo, algo que logo depois é resolvido. Caleb é a cobaia que precisa interagir com Ava e colocá-la à prova.
O triângulo formado por Nathan-deus, a mulher-robô Ava e o humano-Caleb se revela cada vez mais complexo. O questionamento de Garland recai justamente sobre o poder daqueles que dominam as informações em rede e o que podem fazer com elas. A relação entre o homem e a máquina se faz cada vez mais presente em nosso mundo, basta olharmos para o Chat GPT e o quanto tudo isso é assustador, porém real. Garland entende esse fator e faz um excelente uso da tecnologia para questionar a nossa vida na atualidade e o que realmente nos torna humanos. Será que estamos nos perdendo em meio às tecnologias?
Um tanto quanto bíblico, visionário e angustiante, Ex_Machina: Instinto Artificial é uma das grandes ficções científicas dos últimos tempos e faz parte do catálogo da A24. Você pode assistir ao filme pela Amazon Prime Video.
Assista ao trailer do filme aqui.
FIRST COW – A PRIMEIRA VACA DA AMÉRICA | Kelly Reichardt | 2021
Se em Jeanne Dielman, de Chantal Akerman, filme que recebeu o título de melhor de todos os tempos pela revista britânica Sight and Sound (veja a lista aqui), o tempo emula a realidade dos acontecimentos como parte fundamental da própria construção narrativa, em First Cow – A Primeira Vaca da América, Kelly Reichardt trabalha com uma premissa semelhante.
Aqui, a diretora usa o tempo para evidenciar como o capitalismo cruelmente atropelou o ciclo natural e necessário das coisas e da natureza, e transformou a propriedade como algo a ser defendido sob a pena da morte. Trabalhando com a sutileza, com a beleza das coisas banais e, ainda assim, essenciais ao ser humano, como por exemplo, o ato de fritar um bolinho ou de colher cogumelos, Reichardt utiliza-se da amizade entre um cozinheiro, Cookie (John Magaro) e um imigrante chinês, King Lu (Orion Lee), que na Oregon dos Estados Unidos de 1820, buscam, assim como tantos outros viajantes, explorar a terra para construir um capital mínimo para sobrevivência. Dessa amizade genuína masculina surge uma parceria de negócios. Quando o comerciante chefe do forte local (personagem sem nome de Toby Jones), um britânico, faz chegar à América a primeira vaca do país para que seu chá possa ser guarnecido de leite, os amigos encontram uma oportunidade de empregar as habilidades de Cookie na venda de bolinhos fritos – usando leite roubado do animal em questão.
Há muita humanidade e gentileza em First Cow e em seus protagonistas, que vivem às margens desse período pré-capitalista, sempre em fuga de algo ou alguém. A relação entre os dois é bastante comovente, seja pela forma como se tratam, sempre com uma voz muito baixa e doce, murmúrios de incerteza e compreensão mútua, seja pelos sonhos e planos que partilham entre si. Especialmente a intimidade afável com que Cookie cozinha e ordenha a primeira vaca do país, o modo como se orgulha silenciosamente de seu próprio trabalho, reflete bem a paciência que faltará ao mundo capitalista.
A saúde do mundo e das pessoas dependem da espera do tempo natural das coisas, da paciência. Há um tempo certo para que um bolinho seja frito. Há uma quantidade limitada de bolinhos que podem ser fritos de uma vez, e quando eles acabarem, há o tempo necessário para que novos possam ser feitos. A massa precisa de tempo para ser preparada. Há o respeito ao tempo do outro, quando o outro necessita de uma pausa. É sobre esse tempo que já não temos mais que First Cow vem nos dizer.
First Cow está disponível no catálogo da Mubi Brasil.
Assista ao trailer do filme aqui.
SEMPRE EM FRENTE | Mike Mills | 2021
É comum encontrarmos filmes sobre a visão infantil do mundo recorrendo ao onírico, ao fantástico cenário produzido pela própria criança diante da vida. As coisas se tornam mais leves quando levadas aos moldes da infantilidade e da inocência. Em Sempre em Frente, Mike Mills prefere não explorar a fantasia da infância, mas suas dores e a relação complexa dos adultos para com as crianças. Não há subterfúgios, mas o paradoxo real de como cuidar, como “construir” uma pessoa.
Joaquin Phoenix, talvez em sua melhor atuação, interpreta Johnny, um jornalista que atualmente investiga a visão infantil sobre a vida, ouvindo e gravando diversas crianças ao redor dos Estados Unidos. Sua rotina é entrecortada com a presença do sobrinho, filho de sua irmã que há muito tempo não tinha contato. Uma viagem emergencial de Viv (Gaby Hoffmann) faz com que seu filho Jesse (o incrível Woody Norman) passe uma temporada com o tio. Johnny, que achava estar realmente entrando no universo infantil através de seus estudos, descobre agora que ele é muito mais profundo do que imaginava. A presença de Jesse em seu dia-a-dia revela a complexa psique do menino.
A criança é aquela que experimenta o mundo ainda sem pensar nas imposições sociais, na moralidade que os adultos construíram e ainda constroem para si. As convenções humanas e nossas relações, são moldadas pelo eterno dilema do Outro e a sua limitação sobre nossas ações. Os adultos são cheios de rompimentos, de complicações impostas justamente por essa condição. Johnny e Viv são a prova disso, pois romperam seu contato após brigas familiares. Viv ainda tem que lidar com a ausência do marido que, com problemas psicológicos, não pode se fazer presente. No meio disso tudo está Jesse, descobrindo a vida, perguntando sobre tudo, sendo aquele que ainda tem a fala franca, distante da hipocrisia dos adultos.
Mills consegue construir a narrativa com simplicidade, com uma doçura que poucos conseguem. Aos fãs de Richard Linklater talvez haja uma semelhança no modo como trata seus personagens e os diálogos. Phoenix, diferente de sua aclamada atuação como Coringa, é sutil, conseguindo transmitir as preocupações de tio ao mesmo tempo que tem curiosidade de entender aquele universo tão distante de si. A fotografia em preto e branco dá ao longa um ar melancólico, como se a vida sem cores estivesse tentando dominar Jesse e sua inocência. Mas a resistência que o filme nos transmite é o que há de mais belo. Cuidar talvez seja dar espaço, acolher, abraçar, não julgar ou punir.
Precisamos todos do devir-criança para vivermos a vida com mais intensidade. Sempre em Frente é um trabalho recente da A24 e com certeza um dos seus grandes acertos. Infelizmente, o filme recebeu muito menos reconhecimento do que merece e deve ser visto por muito mais pessoas, abrindo o leque da produtora para além dos filmes de gênero. Sempre em Frente, brilhantemente dirigido por Mike Mills, pode ser encontrado no streaming Amazon Prime Video. Corra e assista!
Assista ao trailer do filme aqui.
A TRAGÉDIA DE MACBETH | Joel Coen | 2021
Em abril de 1564, no Reino Unido, nascia William Shakespeare. Hoje, mais de 450 anos depois, a arte ainda se debruça sobre suas obras. O mundo é tomado de versões e visões diferentes sobre peças e poemas que continuam a intrigar e instigar o imaginativo humano. Joel Coen, em 2021, foi “vítima” da atração shakespeariana, lançando, pela A24, A Tragédia de Macbeth, seu filme solo, indicado aos Oscars de melhor ator, para Denzel Washington, melhor direção de arte e melhor fotografia.
O desafio assumido por Coen foi, de fato, ousado. Como recriar para o cinema uma obra já tão conhecida? Como usar das possibilidades da linguagem cinematográfica para convencer o público a mergulhar na história de Macbeth uma vez mais? De Orson Welles (Macbeth, 1948) a Akira Kurosawa (Trono Manchado de Sangue, 1957), há dezenas de obras que contam, sob muitas perspectivas, a mesma história. A competência de Joel Coen o faz acertar já na escolha de seu protagonista: Denzel Washington.
Não só o peso, a grandiosidade e a importância de um nome como Denzel Washington penderam a favor do filme, afinal, trata-se de um dos melhores e mais versáteis atores contemporâneos, sem dúvidas. Mas aqui, principalmente, o protagonismo negro de um personagem de origem britânica, cujo subconsciente imediatamente associa a uma pessoa branca, é primordial, uma necessária quebra de barreiras na luta antirracista.
Outros grandes nomes compõem A Tragédia de Macbeth e contribuem para o enriquecimento do filme. Lady Macbeth é vivida por Frances McDormand, Brendan Gleeson dá vida ao Rei Duncan e Kathryn Hunter concebe o sinistro trio de bruxas.
Além disso, Coen assume os primórdios teatrais de sua história para criar uma obra visualmente muito requintada e minimalista. O jogo de sombras proporcionado pelo uso do preto e branco do diretor de fotografia Bruno Delbonnel é brilhantemente trabalhado, enclausurando os personagens entre paredes diferenciadas por suas texturas e escadarias que se intercalam entre a luz solar e a escuridão. Os ambientes externos são igualmente soturnos e turvos, numa neblina densa que parece sempre acompanhar os personagens.
A Tragédia de Macbeth, apesar de presente no Oscar e em outras premiações, e muito embora recheado de nomes de tremenda força, parece ainda passar despercebido, e talvez até sua associação com a A24 não seja conhecida. É um excelente filme que certamente precisa ser apreciado, e está disponível hoje no catálogo da Apple TV.
Assista ao trailer o filme aqui.
RED ROCKET | Sean Baker | 2021
Sean Baker é um cineasta que tem uma unidade narrativa em sua obra, que tem consciência de sua temática e de como colocá-la em xeque para a reflexão do espectador. Seus filmes carregam o peso das complexas relações humanas, mas de um jeito único, de uma forma que parece simples em sua composição, entretanto nos leva às entranhas do ser humano moderno, resultado de sua condição material histórica. Uma Estranha Amizade (2012), Tangerina (2015) e Projeto Flórida (2017) são retratos de pessoas marginalizadas, levadas ao extremo pelas condições que são impostas por si ou pela sociedade.
Red Rocket não é diferente. Novamente, Baker resolve contar a história de alguém que vende seu corpo, no caso o ator pornô Mikey Saber, interpretado por Simon Rex, conhecido por participações em comédias pastelões de sucesso. Por mais que tenha sido bem sucedido em sua carreira, conhecemos Saber a partir de sua degradação. Talvez fugindo, ele resolve retornar à sua antiga cidade e à sua esposa Lexi (Bree Elrod), até então abandonada por ele. Não sabemos exatamente o que o levou a essas condições, mas temos uma ideia do quanto sua vida era atribulada e seu passado obscuro. Tráfico de drogas, vídeos pornográficos caseiros, o desapego conjugal com Lexi, o problema com drogas e a prostituição da esposa, tudo isso parece ter sido deixado para trás por Mikey quando vira um ícone do cinema adulto.
O que poderia ser uma tentativa de reconciliação com seu passado, na verdade revela o egocentrismo de Saber e, novamente, a condição complexa das relações humanas e dos interesses. Sean Baker deixa claro que nenhuma redenção é possível e Mikey Saber é uma péssima pessoa. Os limites de suas ações estão na ambição de retornar à indústria pornográfica e ao status que um dia teve, nem que isso custe aqueles que o acolheram no pior momento. É assim que seu foco recai sobre a possibilidade de agenciar uma jovem de 17 anos (Suzanna Son) como atriz de filmes adultos. Aliás, a filmografia de Baker aborda temas de difícil digestão, mas que possuem um realismo e um senso de humor mordaz, que, ao mesmo tempo que conduzem uma narrativa simples, nos arremessam o peso de nós mesmos enquanto humanidade falida.
A A24 acerta em se associar a esse grande cineasta de nossa época em Red Rocket. Infelizmente o filme foi pouco divulgado no Brasil, mas você pode assisti-lo na Globo Play. A obra-prima de Baker, Projeto Flórida, também pode ser vista no streaming, pela Amazon Prime Video. Ambos imperdíveis!
Assista ao trailer do filme aqui.
CRIATURAS DO SENHOR | Saela Davis e Anna Rose Holmer | 2023
Essa acertada colaboração entre as cineastas Saela Davis e Anna Rose Holmer, trazido aos cinemas pela A24, o filme irlandês Criaturas do Senhor, protagonizado pela sempre enigmática Emily Watson e pelo novo queridinho do cinema independente, Paul Mescal. As diretoras nos contam a história de Aileen O’Hara (Watson), uma mulher trabalhadora que vive com sua família numa ilha e de pescadores, que vê o sentimento de alívio pela volta de seu filho Brian (Mescal) se transformar em agonia e questionamento moral quando um crime é denunciado na comunidade.
Acompanhando a vertente mais densa e desoladora da A24, o cinza que permeia a ilha e a atmosfera inquietante fornecida pela trilha sonora deixam o espectador num estágio de constante desconforto. Criaturas do Senhor tem muito presente a imprevisibilidade do mar e das marés como guia de sua narrativa e dos acontecimentos. O filme já se inicia com um afogamento, arremessando-nos em meio às águas revoltas do mar ao som de um grito abafado, um começo já bastante significativo para o que se seguirá.
Com Os Banshees de Inisherin ainda ressoando, é inevitável não pensar em como o litoral irlandês é propício para que histórias se desenrolem de forma sinistra. Caminhando por temáticas femininas importantes como sororidade e maternidade, Criaturas do Senhor estreará nos cinemas brasileiros em 10 de abril. Você poderá ler a crítica do Coletivo Crítico sobre o filme em breve.
Assista ao trailer do filme aqui.
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