A Sindicalista | Festival Filmelier
Em A sindicalista, Jean-Paul Salomé, que dirige e roteiriza a obra, tenta abraçar diversas relevantes temáticas, sobretudo no que condiz a temas sensíveis pertinentes ao feminismo contemporâneo, o que invariavelmente esbarra na incongruência de se ver tudo aquilo retratado por um diretor homem. Essa questão leva o espectador a pensar que a obra poderia ser melhor construída por quem, de fato, padece de toda a estrutura sexista e misógina da sociedade.
A trama recorre à estratégia de, em sua primeira cena, já trazer a informação de que Maureen Kearney, personagem interpretada por Isabelle Huppert, foi atacada: sua barriga sofreu mutilações como se formassem o desenho de uma letra “A” e lhe foi introduzida, na genitália, uma faca, cuja lâmina se projetando para o exterior do corpo sugere a “imposição” artificial do falo e sua representação de poder.
A forma como a personalidade e a vida de Maureen são expostas, gera grande interesse pela personagem, sobretudo por um particular conflito que enfrenta: ao mesmo tempo que é representante sindical e luta intransigentemente pelo respeito aos direitos trabalhistas de diversos funcionários, ela trabalha no grupo francês “AREVA”, que atua no mercado de energia nuclear e comanda várias usinas em diversos países. Ou seja, ao mesmo tempo que dedica-se à defesa de direitos de hipossuficientes, coloca-se como “uma peça” da engrenagem de uma corporação que é vista (até mesmo por sua filha) como uma grande poluidora e que traz deletérios efeitos à sociedade. Este mote, absolutamente interessante pelo conflito sugerido, é pouquíssimo explorado pelo diretor, deixando a agridoce sensação de que uma maior atenção do roteiro poderia gerar bons frutos à narrativa.
A personagem de Huppert possui uma grande proximidade com a então presidente da corporação, Anne Lauvergeon (interpretada por Marina Foïs) que já há anos comanda a empresa de forma segura e técnica. Contudo, por conta de rearranjos políticos na França, Anne é destituída do cargo, que é assumido por Luc Ourse (interpretado por Yvan Attal), um homem que, não aparentando ter capacidade técnica para comandar a empresa, nitidamente possui grande ressentimento por ter sido subordinado a uma mulher por tantos anos.
É neste momento que a trama ruma ao que parece ser o seu principal tema: o sexismo e a misoginia.
No momento em que Anne passa a não ser mais quem comanda a empresa, o longa traz ao espectador uma série de dinâmicas que visam refletir sobre a rede de apoio que é construída por mulheres (ainda que reduzida a duas delas) para protegerem-se do excessos e arbitrariedades cometidas por homens, materializando o que entendemos por “sororidade”.
Com a direção da AREVA cabendo a Luc Oursel, o fator “gênero” sempre é utilizado como algo que atenta contra a competência e seriedade de Maureen no desempenho de suas funções. Esta tensão ganha novos contornos quando ela descobre planos da AREVA para concretizar negócios escusos com a China, o que acarretaria em um enorme prejuízo aos trabalhadores da corporação. A forma como isso acontece é absolutamente pitoresca e revela a fragilidade do roteiro assinado por Salomé: Maureen é procurada por um “estranho” que, como em um passe de mágica, decide relatar a ela todo o conluio.
Destemida, Maureen expõe as negociatas com a China em um setor tão estratégico como o nuclear, colocando em xeque aquele acordo comercial. Aqui, cabe traçar uma proximidade da obra que guarda relação com o pensamento do sociólogo brasileiro Jessé de Souza: afinal, a corrupção real é aquela que, pautando-se na lógica da degradação moral da política (a partir da corrupção estatal), repassa as riquezas da nação para grupos estrangeiros que se apropriam daquilo que “deveria ser de todos”. E, ainda assim, não raro, a população espoliada e atônita (muitas vezes influenciada pela mídia) aplaude nefasto espetáculo por achar que assim se evitaria a “corrupção estatal”.
Denunciando os poderosos e seus planos maquiavélicos, Maureen passa a sofrer ataques e ameaças de toda sorte, colocando em risco não apenas a si como seus familiares.
Na construção desta perseguição à personagem, que tem como ponto mais extremo o ataque apresentado ao espectador logo no início do filme, o longa-metragem guarda seus maiores méritos: a forma muito competente com que retrata todo o processo de (re)vitimização de Maureen, que passa por uma série de situações atentatórias à sua dignidade durante as investigações entabuladas pela Polícia e durante audiências ocorridas no Judiciário, com interrogatórios despropositados e vexatórios, reconstituições traumáticas e realização de exames ginecológicos que reproduziam o estupro que sofreu. Não por coincidência, estes atos são praticados por homens, com a exceção da rápida participação de uma policial que, observando o absurdo das situações em que Maureen é exposta, é empática ao seu sofrimento.
Conforme as investigações avançam e o sofrimento de Maureen aumenta, todo o aparato estatal, que reproduz um forte sexismo e possui grande inabilidade para tratar de situações tão complexas quanto a da personagem, passa a mostrar-se absolutamente inapto a solucionar o caso.
Assim, juntando-se a dificuldade de realizar seu próprio papel investigatório e a pressão por parte de poderosos para calar a denunciante, a Polícia passa a tratá-la como suspeita (a despeito de claramente ser vítima!), situação que, sobretudo nos crimes sexuais sofridos por mulheres, é muito comum que se atribua a responsabilidade às próprias vítimas mulheres, não raro fazendo referências à (pouca) vestimenta, a uma eventual e reprovável passividade ou ao estado de embriaguez.
É neste sentido que a construção levada a cabo por Salomé é muito competente, afinal, consegue demonstrar que Maureen está sendo punida por seu pragmatismo, sua segurança em explicar o ocorrido, sua altivez mesmo após um evento tão traumático, sua bravura ao resistir a inúmeras ameaças e sua coragem em denunciar um conluio que envolve poderosos, o que não é aceito vindo de uma mulher.
Ainda que haja uma substancial diferença no que se refere ao recorte de gênero utilizado no longa-metragem, é possível notar uma aproximação entre Maureen e Meursault, personagem clássico do (também) francês Albert Camus. Afinal, Maureen não está sendo punida pelo que fez, mas pelo que é (ou como se comporta).
Durante a fase judicial daquela persecução penal, chama muito a atenção a cena em que a juíza, mulher portanto, reproduz todo o discurso machista/sexista comum na sociedade (também machista e sexista) em situações como aquela, questionando o porquê Maureen se comportara como se comportou e, acima de tudo, deixando implícito a todo momento a sua suspeita de que a vítima inventou ter sido alvo de um crime, o que abre uma discussão relevantíssima, constituindo outro grande mérito de Jean-Paul Salomé: traz-se à tona a temática do “letramento”, afinal, não se deve esperar que todas as mulheres sejam versadas nas questões pertinentes às lutas feministas e reproduzam um politizado discurso em que arrogam a proteção de seus direitos.
Um ponto específico do desenrolar do processo de Maureen me chama especial atenção: a coerção que sofre, reiteradas vezes, para que confesse o cometimento do delito que é acusada, qual seja, ter mentido sobre ter sofrido um estupro. Explico o motivo pelo qual essa temática me afeta de maneira especial, pois pesquiso o tema há alguns anos e, para além da Academia, atuo como advogado criminalista, ou seja, é algo que diz respeito a algo que vejo constantemente em minha atuação profissional. Assim, ver tudo isso tão bem retratado e expondo uma realidade que é ao mesmo tempo calamitosa e comum (ao menos no Brasil e na França) me faz ter, intimamente, uma esperança que a exposição deste cenário no filme possa gerar algum tipo de reflexão acerca desta temática, principalmente aos espectadores que não são “iniciados” nas ciências jurídicas criminais.
O filme cumpre seu papel ao tratar o (enorme) grau de perversidade que há nestas pressões que inocentes/investigados sofrem para assumir uma culpa que não é sua. Maureen, ao não querer se submeter às pressões dos órgãos persecutórios, é vista como alguém que “não quer colaborar com a justiça”, sendo considerada uma perturbadora da ordem por tão somente querer fazer valer seus direitos. Se o próprio Estado tanto pressiona o acusado a confessar, ainda há de se falar de direito à não autoincriminação?
Tudo fica mais difícil para quem “não quer fechar o negócio” – a quem não se submete, provavelmente recairão as mais pesadas punições, principalmente quando ao lado de um acusador que “força o consenso” está um(a) magistrado(a) muito alinhado com as hipóteses acusatórias e que apenas quer “homologar” o que foi decidido (ou imposto?). Este é o cenário perfeito para a formulação de autoincriminações falsas e calúnias.
Durante a exibição do longa-metragem, nota-se uma tentativa por parte da direção de “abraçar” uma série de temáticas que se irmanam pelas suas importâncias ao debate público, contudo, parece que Salomé não consegue dar a importância devida a todas elas dentro da narrativa (ou é incapaz de fazê-lo por ser um homem enfrentando questões femininas, como sexismo e misoginia), fazendo com que algumas fiquem perdidas no roteiro que, em certas oportunidades, se vale de “soluções” absolutamente preguiçosas para fazer a trama se encaixar, indicando uma notória fragilidade que, quando sopesada com qualidades outras da obra, não prejudicam a boa experiência que é assisti-la.