A Filha do Palhaço | 2022
O Coletivo Crítico marcou presença na estreia do Festival de Cinema de Diamantina. A primeira edição do festival exibiu dezenas de curtas e oito longas-metragens, dentre eles, A Filha do Palhaço, filme dirigido por Pedro Diógenes, lançado em 2022. O longa já havia saído vencedor do prêmio do júri de melhor filme em outro festival mineiro, o já bastante tradicional Festival de Tiradentes.
A Filha do Palhaço apresenta a história de Renato (Demick Lopes) e de sua filha Joana (Lis Sutter). Após anos sem contato com o pai, Joana resolve visitá-lo e passar uma semana em sua casa. Essa relação entre pai e filha dialoga com aspecto bastante recorrente na realidade social brasileira: o abandono paterno. Renato é um pai que abandonou a mulher e a filha ainda no começo da infância.
Diferentemente do que costuma ocorrer nesses casos, a ausência da figura paterna em A Filha do Palhaço se dá porque Renato abandona sua família para viver uma história de amor com outro homem. Isso, inclusive, ajuda a dar complexidade ao personagem, acrescentando elementos que enriquecem o que poderia ser uma construção caricata de um pai ausente. Outro aspecto que dá a Renato um traço particular é o fato de trabalhar como ator – ainda que ele próprio demonstre certo receio em se apresentar desse modo, precisando ouvir de um colega de profissão que “ator nunca deixa de ser ator”. É que sua atuação consiste em interpretar Silvanelly, uma palhaça que faz quadros de humor em bares de Fortaleza.
O longa se inicia com um esforço de (re)aproximação feito pela filha, que vai até um show de seu pai – o motivo desse gesto só seria explicado no terceiro ato. Ambos estão distantes nesse momento inicial da relação. Para além da interpretação dos atores, o roteiro acerta em atravessar as cenas e diálogos iniciais pelo silêncio que, fruto da ausência de intimidade, expressa a desconexão entre ambos. O espectador pode, assim, sentir a inquietação e o constrangimento daquela relação que parece não ter elementos suficientes para se estabelecer.
Toda a criação artística do longa reforça o distanciamento entre Renato e Joana. Se ela dorme cedo, ele só vai deitar tarde da madrugada. Se ela parece ter um apetite voraz pela manhã, ele não come nada no começo do dia. Ele admirador – e também artista – da cultura brasileira; ela sempre com camisetas que fazem referência à cultura estrangeira. Desse modo, o longa é muito eficiente em construir a relação entre pai e filha e permitir que o espectador não só entenda, mas também sinta um pouco do afastamento entre eles.
À medida em que os dias vão passando, contudo, acompanhamos uma aproximação entre os dois. Pedro Diógenes conduz bem esse processo, de tal forma que vemos o estreitamento dos laços acontecer de forma natural, sem soar cansativo e também sem dar grandes saltos narrativos. Vemos progressivamente a filha se abrir para o pai e as suas rotinas entrarem mais em sintonia – sintomático disso é a cena em que pai e filha almoçam (pastel!) juntos. Do mesmo modo, Joana acompanha o pai nos shows (e nos bares em seguida). Ela também se coloca em risco para honrar o trabalho do pai quando ele era atacado por um fanático torcedor do Ceará que se incomodava com o show de Silvanelly que ocorria simultaneamente a uma partida de futebol.
A cumplicidade entre pai e filha encontra um dos seus momentos catárticos quando Joana vive sua primeira frustração amorosa. Ali, Renato se mostra um companheiro, capaz de ajudar a filha a superar essa experiência. Ele está ao seu lado quando ela picha o muro do ex-namorado (ou talvez nem isso) com os hilários – porque ingênuos – dizeres: “João Lucas beija mal”.
A predisposição de Joana de se conectar com o pai a essa altura já é evidente e, novamente, pode ser identificada pelas atuações, mas também por outros elementos da linguagem cinematográfica. O figurino, por exemplo, traduz sutilmente essa mudança vivida pela jovem: as roupas que utilizava, em geral em referência à cultura pop estrangeira, são substituídas por uma camisa com o rosto de Silvanelly. Tudo isso contribui para a criação do clímax, quando Renato apresenta a música “Tô fazendo falta” da cantora Joanna à filha (homônima da cantora). Toda a construção anterior faz dessa cena belíssima, o momento do encontro é marcado pela trilha nostálgica (ao menos para quem viveu os anos 1990) e pela performance magnífica de Demick e de Lis.
A canção representa o auge da relação entre os dois. O título e o refrão, contudo, não deixam dúvidas da fronteira existente. Há ali uma “falta” que não poderá ser suprida de forma tão simples por meio de uma conexão que se estabelece em poucos dias. O que construíram nesse período é pouco para o que socialmente se espera de uma relação pai-filha.
E aqui o diretor acerta ao trazer novamente para questões ligadas à alimentação um ponto fundamental para estabelecer o limite do que se construía até aqui. Demarcando o distanciamento com o café da manhã e reaproximando os personagens com o pastel na hora do almoço, o momento em que Renato oferece à filha uma prova de um molho com camarão, sem saber que ela era alérgica, marca o momento do distanciamento. A cena que se desenvolve a partir desse ponto é riquíssima, mostrando como diante da urgência, em um hospital, Renato não sabe dizer coisas básicas sobre a filha.
No terceiro ato, ao apresentar o reencontro de Renato com a mãe de Joana (que não guarda bons sentimentos em relação a ele desde o abandono que sofreu), ouvimos da voz da mãe aquilo que parece ser o contraste da relação de Renato com a filha. Ela diz: “você sabe o que é alterar totalmente o ritmo, os hábitos, a sua vida, para encaixar na vida da sua filha?”. Não, Renato não sabe. Por isso a relação com Joana nos poucos dias em que estiveram juntos levou a filha a se adaptar ao modo de vida do pai. Não por outra razão, acompanhamos diversas vezes Joana dormindo na rede ou no bar, almoçando pastel, dentre outras coisas que não lhe eram habituais.
Diógenes fornece sinais suficientes para que possamos considerar que a mãe de Joana talvez esteja excessivamente apegada à imagem infantil dela. Um dos elementos que reforçam essa construção é o seu apego à caixinha de música da filha – o que remete ao universo da infância. Ao mesmo tempo, estar com o pai talvez tenha dado à Joana a possibilidade de escapar dessa imagem de criança e ver-se como adulta. Mas é inevitável a constatação de que, na relação entre pai e filha, foi ela quem se adaptou à vida do pai, ao contrário do que ocorria na relação com sua mãe.
Embora não consiga manter no desfecho da narrativa a riqueza criativa que marca os dois primeiros atos, A Filha do Palhaço concilia bem e consegue tratar de forma profunda a relação de Renato com a arte, com sua filha e a inter-relação entre essas duas coisas. Nesse sentido, faz lembrar, em alguma medida, outras obras que exploram o difícil ofício do palhaço que precisa fazer rir mesmo quando está atravessando um drama pessoal (como em O palhaço [2011], de Selton Mello).
A direção consegue em A Filha do Palhaço promover, ainda, uma interessante reflexão sobre o lugar subalternizado em que se encontram drag queens e artistas, em geral, que fazem shows em bares. Por mais que essa seja uma reconhecida tradição cearense e, em especial, de Fortaleza, o longa não deixa de apontar como há uma certa depreciação dessa forma de expressão artística. Vemos Renato sofrer na pele o desrespeito por seu trabalho, o que certamente contribui bastante para que em vários momentos ele próprio não reconheça seu valor artístico. Tudo isso se dá, contudo, sem deixar de colocar no centro da obra a discussão sobre paternidade, os impactos das suas ausências e as dificuldades inerentes aos processos de reaproximação.
Trata-se de uma obra belíssima, dessas que reforçam a riqueza do cinema brasileiro. Infelizmente, diante da injusta disputa que se estabelece para que filmes nacionais de baixo orçamento entrem no circuito comercial de cinema brasileiro, pouquíssimas pessoas tiveram e terão a oportunidade de assistir A Filha do Palhaço. Se há um alento, ele está justamente na existência de festivais de cinema Brasil afora que buscam contrariar essa triste tendência e dar visibilidade às produções nacionais. Vida longa ao Festival de Cinema de Diamantina!
Obrigado pela crítica generosa, querido! Esse filme também me emocionou. Vida longa ao Coletivo Crítico!