CANNES | 5 Grandes Vencedores da Palma de Ouro

CANNES | 5 Grandes Vencedores da Palma de Ouro

Maio é um mês especial na pequena cidade de Cannes, ao sul da França: é quando se estende o tapete vermelho para a passagem de grandes realizadores e realizadoras da Sétima Arte. Nascido em 1946, o Festival de Cannes se tornou uma das maiores celebrações do Cinema ao redor do mundo. Cannes ganhou prestígio em um cenário tomado pela premiação do Oscar. A proposta é bem diferente e muito mais abrangente que a do evento norte-americano. Enquanto o Oscar tem um caráter mais comercial, voltado para a cultura estadunidense, Cannes é cosmopolita, rompe com barreiras idiomáticas e propõe um espaço maior a filmes que, em sua grande maioria, não entram no circuito de cinema padrão.

Mesmo assim, é importante ressaltar que ambos têm um caráter mercadológico, guardadas as devidas proporções. Em paralelo às mostras de filmes no Festival de Cannes, acontece o Marché du Film (mercado do filme), que tem por objetivo justamente o comércio, a distribuição e acordos de produção cinematográfica. O Cinema depende dessa relação comercial, principalmente o lado mais marginalizado pela grande indústria, e a proposta de Cannes é de extrema importância para manutenção desse tipo específico de arte. Por mais que o público tenha o costume de olhar com mais entusiasmo para a premiação, Cannes vai além disso, incluindo mostras não competitivas e Premières. Nomes que geralmente são ignorados pelo grande circuito cinematográfico norte-americano ganham visibilidade, tanto é que todo ano se revelam novos cineastas e artistas para o mundo. Afinal, onde é que primeiro ouvimos falar de Nuri Bilge Ceylan, Apichatpong Weerasethakul ou os irmãos Dardenne?

Os moldes da premiação também são bem diferentes dos que estamos acostumados no Oscar. Foi apenas em 1955 que o Festival de Cannes começou a premiar seus filmes, láurea que ficou conhecida como Palma de Ouro. Há também o reconhecimento para atuações, direção, roteiro, primeira realização em longa-metragem e um prêmio especial do júri. Aliás, os votantes se restringem a menos de uma dezena de pessoas ligadas ao Cinema com um escolhido como presidente. Em 2023 o júri foi composto por Brie Larson (atriz estadunidense), Paul Dano (ator estadunidense), Maryam Touzani (diretora marroquina), Denis Ménochet (ator francês); Rungano Nyoni (diretora zambiana), Atiq Rahimi (roteirista franco-afegão), Damián Szifrón (diretor argentino); Julia Ducournau (diretora francesa que já foi premiada por Titane) e presidido pelo já duas vezes vencedor Ruben Östlund (diretor sueco).

De 1955 até hoje se nota a premissa da multiplicidade nas premiações do Festival. Se pegarmos os últimos cinco vencedores temos uma amostra: Triângulo da Tristeza (Suécia), Titane (França), Parasita (Coréia do Sul), Assunto de Família (Japão) e Imagem e Palavra (Suíça). O Brasil é frequentemente bem lembrado na história do festival, inclusive ganhamos a Palma de Ouro com O Pagador de Promessas (Anselmo Duarte), em 1962. Fato é que, assim como qualquer premiação, hora ou outra o vencedor não é o melhor filme, entretanto, o Festival de Cannes parece ter uma consistência que chama a atenção dos amantes do Cinema. É comum saírem de lá obras-primas que depois ficariam marcadas na história ou que, pelo menos, levantam questões importantíssimas de nosso tempo.

Nossa lista não tem função hierárquica, mas sim de possibilitar que o leitor entre em contato com grandes filmes que passaram pelo Festival de Cannes, podendo, então, evidenciar a diversidade do evento e conhecer um pouco mais sobre seu funcionamento. 

Aqui estão ótimas obras que talvez não tenham recebido o reconhecimento pelo mainstream, porém, de alguma forma, tocaram aqueles que os indicaram e, com certeza, aquele maio em Cannes, levando para casa o prêmio máximo, a Palma de Ouro.

SEGREDOS E MENTIRAS | Mike Leigh | 1996

Por mais que este filme do britânico Mike Leigh tenha chegado ao radar do Oscar, tendo cinco indicações, não alcançou grande visibilidade. Naquele ano quem saiu prestigiado foi Anthony Minghella com O Paciente Inglês. Como se tratava de um filme clássico para os moldes da Academia, era muito conveniente dar-lhe as principais estatuetas da noite. Mas foi em Cannes que Segredos e Mentiras brilhou, não só recebendo a Palma de Ouro, como também o prêmio de melhor atuação para a magnífica Brenda Blethyn.

Quem conhece alguma coisa sobre o Leigh provavelmente nota que sua matéria-prima é intimista, tratando principalmente de problemas relacionais, de família e psicológicos. Seus personagens são pessoas com quem cruzamos todos os dias, aquelas que escondem sob o olhar um mundo muito mais complexo do que aparenta ser. O peso dramático que o diretor carrega no filme está na convivência de Cynthia (Blethyn) com seus familiares, em especial com sua filha que está prestes a comemorar seu vigésimo primeiro aniversário. Mãe solteira, Cynthia tem em si os reflexos de um passado obscuro, uma gravidez na adolescência e os problemas para lidar com isso. Seu estado emocional é claramente abalado. A forma como mãe e filha se tratam demonstra uma maternidade problemática e a convivência árdua com seus estigmas.  Além disso, há um segredo que bate à porta de Cynthia: sua outra filha, mais velha, que fora dada à adoção, resolve encontrar a mãe biológica depois de décadas. Seu passado vai ainda mais fundo revelando um trauma ainda mais doloroso. O desenlace da trama se dá em um churrasco oferecido por seu irmão, Maurice (interpretado pelo parceiro de longa data de Leigh, Timothy Spall), que pensa em colar os fragmentos do que um dia foi uma família.

Também é comum em filmes de Mike Leigh que o espectador esboce um sorriso no canto da boca. Apesar de todo sofrimento da vida, das dificuldades que temos na relação com o outro, há um breve espaço de paz e de esperança. Segredos e mentiras vão sendo revelados, mas, como diz uma das filhas de Cynthia ao final, é muito melhor viver a verdade, por mais complexa que seja. O vencedor da Palma de Ouro de 1996 merece ser visto e sentido. Não há como sair ileso de um filme que consegue ser devastador em sua simplicidade, algo que Leigh sabe fazer muito bem.

por: Vinicius Costa

GOSTO DE CEREJA | Abbas Kiarostami | 1997

O Irã é uma terra castigada pela guerra e com um povo tão castigado quanto a terra, correndo atrás de meios para sobreviver. Em Teerã, capital iraniana onde se passa o longa de Kiarostami, também local onde nasceu, abrigam-se muitos afegãos e pessoas de nacionalidade diferentes em busca de refúgio e trabalho. Em Gosto de Cereja, encontramos mais um retrato naturalista do diretor, que faz seu cinema com um olhar parecido ao do neorrealismo italiano, preocupando-se mais em retratar pessoas reais e suas histórias, mostrar uma realidade mais concreta de um país, do que essencialmente em fantasias narrativas. Kiarostami mescla muito bem esses dois aspectos em seus filmes, trazendo uma visão própria, e muitas vezes transformadora, de sua terra de origem.

Gosto de Cereja traz uma reflexão sobre vida e morte, mas sobretudo, acerca das camadas espinhosas que uma questão crucial pode ter: afinal, temos o direito de decidir a hora de nossa morte? Em um local de cultura extremamente religiosa, onde a vida é considerada uma dádiva de Deus, e o suicídio um pecado, somos entrelaçados por alguns pontos de vista junto à jornada do Sr. Badii.

O protagonista é um homem de meia idade que surge em tela dentro de seu automóvel à procura de um cúmplice que o ajude a concluir em paz seu plano suicida em troca de dinheiro. Badii está decidido a findar com a própria vida, ele já tem uma cova em um local específico, perto de um barranco onde fica uma árvore, mas precisa que ao amanhecer, caso não esteja mais vivo sob efeitos de seus tranquilizantes, alguém jogue 20 pás de terra sobre seu corpo.

O automóvel é peça chave na construção narrativa de Kiarostami, o fazendo refúgio de conversas e confissões, relatos e divagações filosóficas. Um receptáculo protegido, de certa maneira, do julgamento da sociedade que está “do lado de fora”. A janela do carro vista de dentro pra fora, nos arrebata diretamente aos diálogos que irão transformar a vida de Badii, mas essa mesma janela vista de fora pra dentro, delimita e faz a margem da relação que Badii quer e determina com o resto do mundo. Sua desconexão com os demais, o isolamento de sua dor. 

Não se sabe ao certo a decisão final de Badii e não se sabe também nada sobre seus problemas, inclusive, o protagonista está em um papel muito mais receptor do que doador em qualquer sentido em Gosto de Cereja. O que Badii tem a oferecer é dinheiro e uma explicação breve de seu plano, ele não compartilha sua história. Em contrapartida, espera uma simples tarefa colaborativa e recebe palavras que atravessam e transformam seus possíveis últimos momentos de vida. 

Kiarostami nos faz refletir sobre a valorização da vida e das coisas simples que podem ser mais do que suficientes para nos dar motivos para vivê-la, além de nos conscientizar de nossa pequenez enquanto criaturas deste mundo em mais um bonito olhar sobre a sofrida, seca e árida terra do Irã. O longa ganhou a Palma de Ouro em Cannes em 1997, mesmo ano de seu lançamento e pode ser assistido no catálogo da MUBI.

por: Mari Dertoni

 OS GUARDA-CHUVAS DO AMOR | Jacques Demy | 1964

Há obras cinematográficas que transbordam o amor como sentimento. Outras que exalam o amor por si mesmas, pela própria linguagem cinematográfica. Há filmes, ainda, que declaram seu amor a outras obras, clássicos basilares do cinema. Os Guarda-Chuvas do Amor, musical de Jacques Demy, marido e companheiro de vida de Agnès Varda, consegue ser tudo isso: um filme que retrata o amor ideal e realista, que honra o que a linguagem cinematográfica lhe oferece para realizar sua ideia, utilizando-se com perfeição de todos os elementos que o cinema proporciona, e que hoje é reverenciado e referenciado por diretores contemporâneos. 

Musical puro, inteiramente cantado nas composições do parceiro constante de Demy, Michel Legrand, o filme parte do que há de mais singelo no cinema para cravar seu tema: o amor, um casal extremamente apaixonado (interpretado por Catherine Deneuve e Nino Castelnuovo), cujos sonhos e idealizações são atravessados pelo realismo da vida, pela distância e pelo endurecimento. Demy contrapõe a simplicidade e a pureza de sua temática e conta essa história através do uso potencial e rigoroso das cores, do figurino e elementos de cena, que se transformam e perdem seu brilho conforme as situações vivenciadas pelos personagens, sendo detalhista e criterioso nessa composição. O resultado evidencia o apreço e o carinho de Demy por sua obra, tornando possível sensibilizar o espectador por simplesmente perceber que a protagonista deixa de usar o pink usual do amor idealizado e da felicidade para vestir-se de um azul florido que se confunde com o papel de parede de sua própria casa, a mulher que se funde com o próprio lar.

Além de levar a Palma de Ouro, o Festival de Cannes de 1964 deu a Os Guarda-Chuvas do Amor o prêmio Technical Grand Prize e o OCIC Award. O longa concorreu, ainda, a cinco estatuetas do Oscar: em 1965 foi indicado a melhor Filme Estrangeiro e em 1966 a melhor roteiro, melhor canção, melhor trilha sonora e melhor partitura. A atriz francesa Catherine Deneuve, homenageada do Festival de Cannes 2023, teve sua carreira impulsionada por Jacques Demy como protagonista de Os Guarda-Chuvas do Amor, à época com 21 anos.

Os Guarda-Chuvas do Amor é o típico filme que nos faz agradecer pela existência do cinema, e de diretores como Demy, que compreendem a potência da arte que costuram e sabem exatamente o que pretendem com suas composições. E assim se constroem obras-primas. O filme está disponível no catálogo da MUBI.

por: Natália Bocanera

O SHOW DEVE CONTINUAR | Bob Fosse | 1979

Bob Fosse já era consagrado quando realizou O Show Deve Continuar, afinal, tinha dado ao mundo a obra-prima Cabaret em 1972. Com uma carreira cinematográfica curta, apenas cinco filmes dirigidos, Fosse participou mais ativamente no teatro e atuando em alguns musicais na década de 50. O que o revelou ao mundo como grande nome do cinema musical foi o sucesso no filme com Liza Minnelli, levando, inclusive, o Oscar de melhor diretor.

O Show Deve Continuar demonstra todo brilhantismo de Bob Fosse, não só pela condução das coreografias, mas por reforçar um caráter dramático que já se via em Cabaret. Ao contrário da beleza que se possa associar aos grandes números de dança nos musicais, aqui o que se evidencia é o caráter autodestrutivo do ser humano, representado pelos movimentos do corpo. O filme é um relato autobiográfico do diretor, onde acompanhamos Gideon (com atuação magistral de Roy Scheider), cineasta e coreógrafo, e as demandas de sua vida pessoal e artística. Entre suas crises de criatividade, seu desejo sexual e a doença que o consome, Gideon não se importa mais com limites. Apenas as pílulas parecem lhe dar energia para suportar o peso sobre si. A fonte de seus problemas parece estar na relação com as mulheres e na forma como as tratou durante sua vida. Sua namorada, sua ex-esposa e sua filha passam por Gideon sem que ele realmente se importe. A vida de excessos chega para cobrá-lo e, a partir de então, o filme encaminha para uma reminiscência psicodélica, uma autoanálise surrealista por meio da dança. A morte também aparece como uma mulher, representada pela então namorada de Fosse, a bela Jessica Lange.

 O filme se sagrou vencedor de quatro categorias no Oscar em 1980, mas todas voltadas às questões técnicas. Ofuscado por Cabaret, O Show Deve Continuar acabou sendo relegado a um segundo plano na filmografia de Fosse, mas merece toda nossa atenção como uma obra tão boa quanto o clássico de 1972, se aprofundando na conturbada psique do artista e seu processo criativo. Você pode alugar esse vencedor da Palma de Ouro acessando o catálogo premium da Prime Video

por: Vinicius Costa

ORFEU NEGRO (ORFEU DO CARNAVAL) | Marcel Camus | 1959

Orfeu Negro, também conhecido como Orfeu do Carnaval, é o filme que colocou as manifestações artísticas e culturais do Brasil no radar do mundo. Adaptado da peça teatral Orfeu da Conceição de Vinicius de Moraes, Orfeu Negro é inspirado na tragédia grega de Orfeu e Eurídice, ambientado no Rio de Janeiro, na favela fictícia da Babilônia, e narra a história de um amor trágico de carnaval. Primeiro filme falado em língua portuguesa a conquistar um Oscar e o único a receber o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1960, foi premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1959. O único detalhe é que todas essas premiações não foram concedidas ao Brasil: o filme é uma produção ítalo-franco-brasileira, Marcel Camus é francês, e quem levou todo o reconhecimento (e prêmios para casa) foi a França.

A trilha sonora é de Tom Jobim e Luís Bonfá, e impulsionou o sucesso internacional da bossa nova. Sendo dirigido por um europeu, Orfeu Negro também disseminou no mundo a idealização problemática de um Brasil exótico, miscigenado, sem racismo, sensual, de um povo alegre que, em que pese a miséria, consegue ser feliz ao som onipresente das músicas de carnaval, essa festa onde todos os problemas são esquecidos. Apesar da questionável representação, trata-se de um filme belíssimo que faz um uso estupendo das cores e da paisagem naturalmente magnífica do Rio de Janeiro, como se estivesse sempre abençoando cada cena.

A insanidade e euforia que são nossas festas de carnaval não deixa de estar ali bem representada. A escalação de um elenco extremamente competente, quase que inteiramente composto por atrizes e atores negros, torna Orfeu Negro um dos poucos filmes da época a oferecer essa representatividade nas telas, que traz, ainda, uma cena memorável que representa um ritual de religião de matriz africana. O carisma do elenco principalmente infantil fez com que o filme nos presenteasse com uma das cenas mais icônicas do cinema, mundialmente conhecida, onde as crianças Zeca e Benedito tocam violão para que o sol possa nascer.

Guardando uma legião de importantes admiradores do mundo do cinema (Barack Obama e Bong Joon-Ho são alguns deles), e sendo exemplar no modo como transita entre a exaltação e o sombrio, é um filme feito para o exterior, para o gringo, mas que guarda uma pureza, uma inocência e uma beleza única capazes de emocionar o espectador, a despeito de suas contrariedades. Você pode alugar esse vencedor da Palma de Ouro acessando o Google Play.

por: Natália Bocanera

Authors

  • Mari Dertoni

    Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

    View all posts
  • Natália Bocanera

    Na escassez de tempo, entre advogar e dedicar-se à sua dezena de felinos, escolheu o cinema como ponto de equilíbrio e formação individual do seu "eu", em permanente descoberta.

    View all posts
  • Vinicius Costa

    Fragmentos dos filmes que vejo remendados pela Filosofia.

    View all posts

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *