Bem-vindos de Novo | 2023

Bem-vindos de Novo | 2023

Retratos de uma dor pessoal e de um problema estrutural e coletivo

O primeiro longa do diretor brasileiro filho de descendentes japoneses, Marcos Yoshi, é um retrato íntimo e um resgate de memórias pessoais de quando seus pais, Roberto Shinhti Yoshisaki e Yayoko Yoshisaki, precisaram deixar o Brasil e ir ao Japão em busca de trabalho, a fim de garantir seu futuro e o de suas duas irmãs. Através de filmagens de arquivo, fotografias antigas e relatos recentes de seus pais e irmãs gravados por ele, Yoshi monta um documentário extremamente delicado, que preenche lacunas e reabre feridas de toda a família. Bem-vindos de Novo constrói uma espécie de mosaico de memórias, – que nos faz lembrar o premiado Aftersun (2022), de Charlotte Wells – através da ajuda de imagens resgatadas e novos registros, compartilhando com o espectador questões íntimas do diretor e sua família.

Passeios de escuna, sua memória mais divertida de momentos em família nas férias de verão, todos amontoados em mar aberto ao balanço das ondas em filmagens lo-fi de câmera portátil. Essas imagens garantem a abertura do filme que trabalha primeiro com a presença, com os momentos de união, o rosto de Roberto e Yayoko estampados na tela, junto do jovem Yoshi, das meninas, tios e agregados. Logo a narração nos alerta que aquele momento virou raridade e que por muitos anos correu o risco de se apagar. Seus pais, perto da virada do milênio, resolveram voltar ao Japão para trabalhar, deixando os três filhos adolescentes aos cuidados dos avós no interior de São Paulo. 

A casa dos avós de Yoshi, onde cresceu e foi criado, vira pano de fundo do longa e uma espécie de túnel do tempo, como um depósito onde muitos objetos pessoais estão preservados, como pastas de coleções de adolescência, fotografias enviadas do Japão com escritas a mão de relatos do dia a dia de seus pais, que inicialmente ficariam fora do Brasil por dois anos, acabaram somando treze anos em terras estrangeiras. É aqui que Nathalie e Cynthia, as irmãs do diretor, entram em cena, relembrando junto com ele alguns momentos turvos, apagados ou bloqueados na memória. 

Bem-vindos de Novo começa então a trabalhar com a ausência, com essa lacuna inevitável na vida dos três irmãos. Uma fala marcante de Yoshi ao contar que se sentia “órfão de pais vivos”, contrasta e se encaixa com a perspectiva de seu pai ao dizer “eu não conheço meus filhos”. Um laço desfeito pelo tempo e pela necessidade latente de ganhar dinheiro diante de uma crise financeira, de correr atrás de trabalho, nem que seja do outro lado do mundo. Uma pressão social-capitalista comum em diversos âmbitos, uma questão estrutural de nossa sociedade industrial de consumo e que aflige principalmente o patriarca da família.

Pouco a pouco o filme nos faz perceber o enorme peso e as consequências que essa situação causou no núcleo familiar dos Yoshisaki, como por exemplo, o desprezo por datas comemorativas como ano novo pelas meninas, que relatam não gostar mais de comemorações, como também, ao se encontrarem novamente, todos perceberem as enormes diferenças da memória que tinham, de mais de dez anos atrás preservada em suas mentes, com a realidade diante de seus olhos. 

Para além do drama familiar, Bem-vindos de Novo trata de uma condição que não é particular à família do diretor, mas uma realidade vivida por uma grande quantidade de imigrantes e descendentes japoneses no Brasil, especialmente em São Paulo, e que por necessidade são levados a trabalhar no Japão por empreiteiras que terceirizam trabalhadores imigrantes, uma mão de obra facilitada e explorada ao extremo. No caso dos pais de Yoshi, em uma fábrica de marmitas, onde eles trabalhavam como operários em ofícios manuais, em pé por 12 horas ao dia. 

Os calos nas mãos e os dedos deformados de sua mãe, o desleixo com a saúde e a falta de familiaridade com o mundo atual relatados por seus pais, mostram o quão cruel e intenso é o serviço em grandes fábricas japonesas, onde só se trabalha, come e dorme de exaustão até o dia seguinte. Não há espaços para “viver fora da fábrica”. A dura realidade quebra a expectativa sobre o país de origem de uma família que sempre se sacrificou por ela. Yoshi conta que ao fazer este documentário, busca se reaproximar da família, conta brevemente também sobre seus avós, que fizeram o caminho inverso de seus pais, vindo ao Brasil em busca de conseguir mais dinheiro para voltar ao Japão, objetivo que nunca conseguiram alcançar. Um fracasso marcado pela falência de seu negócio de colheita de algodão, ilustrado por velhas fotografias e relatos de sua avó, e que se reflete no fardo que seu pai parece carregar, por estar novamente no Brasil sem ter conquistado o que buscava em seu país de origem.

Bem-vindos de Novo é um filme sincero, que não diminui a tristeza que sua história carrega e, ao mesmo tempo, abriga tantas outras. De fato parece que eles acabam se conhecendo melhor através dessa experiência fílmica, pelo contato pessoal com afeto e com inevitáveis conflitos que emergem de uma realidade sensível e bastante humana. De linguagem simples e sem preciosismos estéticos, o filme cumpre seu papel afetivo e questionador. Reaprender a amar os próprios pais, um amor adormecido que foi encoberto pela distância, revisitado e revirado por arrependimentos. No fim Yoshi só queria tocar seu pai, sentir sua família de volta, saber quem eles são hoje, que eles também saibam quem ele é e tê-los, mesmo que brevemente, perto de si novamente.  

O filme teve sua première mundial no Tokyo Documentary Film Festival, no Japão, e sua primeira exibição no Brasil na Mostra Aurora, em Tiradentes. Bem-vindos de Novo estreia dia 15/06 nos cinemas brasileiros distribuído pela Embaúba Filmes, chegando às cidades de Aracaju, Belo Horizonte, Brasília, Fortaleza, Niterói, Palmas, Porto Alegre, Ribeirão Preto, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.

A Embaúba Play disponibilizou dois curtas do diretor gratuitamente nos links abaixo:
Aos Cuidados Dela (2020)
Quando o Céu Desce ao Chão (2011)

Nota

Author

  • Mari Dertoni

    Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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