Curtas Mostra Luas Parte 2 | 6ª Mostra Lugar de Mulher é no Cinema

Curtas Mostra Luas Parte 2 | 6ª Mostra Lugar de Mulher é no Cinema

O Livro Azul, Aquele Ali da Prateleira de Cima

Dir: Carolina Ferreira

As memórias borbulham na cabeça de Antônia. Voltar ao passado faz com que a jovem inevitavelmente se encontre com a ausência da mãe. Uma infância cortada pelas idas e vindas de Betânia, fazendo com que a filha fosse criada pela avó, Dolores. Agora crescida e com a consciência capaz de autoanálise, Antônia resolve lidar com o mistério de seu passado, afinal, a ausência materna é como um vulto, um rosto borrado, ou “fora do quadro”, como é neste filme da diretora Carolina Ferreira.

O regresso psicanalítico de Antônia remonta os fragmentos de sua vida a partir de pequenas pistas deixadas por Betânia. “Vou deixar tudo nos livros” – diz a mãe à filha quando perguntada o motivo de seus sumiços. As imagens vão aos poucos retornando, mas nunca com o rosto da mãe. Mesmo sem entender, a menina fica fascinada pelas histórias que ouve: cada período fora que Betânia passava era uma batalha contra forças malignas, monstros que precisavam ser derrotados. Não seria a maternidade essa luta constante para estabelecer um mundo melhor aos filhos? Ainda, não devemos ignorar o fato de que as três gerações retratadas são de mulheres negras, o que faz a luta ainda mais pesada. Talvez a criança não entendesse o que isso significava em sua vida, trazendo-lhe a revolta, porém as fábulas se misturaram com sua própria construção subjetiva e política. O livro azul, aquele lá na prateleira de cima, deixado por Betânia, é muito mais do que uma justificativa, é um encontro com a luta das mães negras no Brasil. 

Reprodução.

Torta de Limão

Dir: Vitória Mantovani

A opressão sentida pelas mulheres em nossa sociedade é algo inimaginável aos homens. Não sentimos o pesadelo constante de perseguição, dos olhares, do medo. É por isso que, como diria Simone de Beauvoir, a condição feminina está além da masculina, já que a estruturação existencial é muito mais complexa.

Assistindo Torta de Limão o espectador poderá ter uma amostra dessa condição. O caminho escolhido pela diretora Vitoria Mantovani é doloroso, difícil de ser visto. Sua personagem, Fernanda, chef de cozinha, é a representação de muitas mulheres, infelizmente. Após sofrer um estupro, ela se torna reclusa em seu apartamento, não vai mais ao trabalho, não come direito e não quer manter contato com mais ninguém. As terríveis lembranças daquele ato reaparecem a cada momento na forma do mais terrível pesadelo. Todas as forças lhe foram tomadas pelo abusador. O desespero e as incertezas de uma marca incurável aumentam quando Fernanda suspeita estar grávida. A palidez dos cenários, do figurino, da iluminação e da própria personagem reforçam um esgotamento da vida.

Uma centelha de luz traz um tanto de força. Sofia, colega de trabalho de Fernanda, toca a campainha. A partir dali se estabelece uma relação de sororidade e compreensão. As duas trocam forças para resistir. A dor é insuportável e chega até quem assiste ao curta-metragem que, tomado por sua consciência, se vê de frente com esse fragmento do peso da condição feminina. 

Reprodução.

Les Dauphins

Dir: Rubi Demargot

Les Dauphins (os golfinhos, em tradução literal) é um filme belga que, mesmo distante do Brasil, não diverge da luta das mulheres brasileiras. A estrutura opressora aparece aqui por seu viés moral e psicológico. O que sente uma jovem negra tentando ser atriz de teatro na Bélgica, lamentavelmente, é comum às mulheres de todo o mundo. 

Utilizando-se do artifício teatral, Demargot constrói uma narrativa poética e minimalista. Um diretor branco, uma atriz negra. Gritos de ordem e a tentativa de dominação do corpo. No chão, ovos que podem ser esmagados a qualquer passo em falso. A cadeira é o trono da masculinidade que controla. A bela fotografia em preto e branco encaminha esses elementos a um esgotamento, um corpo que pede socorro. As mulheres do teatro se revoltam e dizem: “isso não é o teatro!”. A mensagem é ainda mais bela e urgente: destronar o homem, abrir outros espaços para a arte e transformá-la na arma de revolução!

Reprodução.

Reservado

Dir: Ana Amélia Arantes

Um irreverente fotodocumentário que conta a história da descoberta da transgeneridade de Sol. Os banheiros que percorreu pela vida funcionam como cenários. As placas indicam o gênero que é permitido acessar aquele espaço e como se comportar lá dentro. O que eles escondem? É com certeza um lugar íntimo, reservado. 

A narradora transitou entre os gêneros nos banheiros. O masculino é aquele mais invasivo, cauteloso. Com o passar do tempo ele se torna brusco, violento e lhe causa medo. O feminino seria um refúgio, mas no começo não foi assim. Lá também havia o olhar julgador que questionava a presença do corpo trans onde a placa dizia “feminino”. Mas o que é o feminino? Sol se afirma como mulher e requisita seu espaço. Aquele toillet também é seu.

As fotografias emolduram as histórias de Sol, criando um belíssimo retrato de descoberta e de resistência. Ana Amélia Arantes nos presenteia com um curta-metragem de sete minutos, mas que nos atinge por muito mais tempo que isso, uma pequena lição de empatia e uma grande arma contra o preconceito.

Reprodução.

Itinerário das Cicatrizes

Dir: Gloria Albuez

Uma das mazelas deixadas pela era bolsonarista no Brasil foi, com certeza, a ambiental. O descaso do governo causou diversas tragédias ao redor do país, consequências essas já anunciadas pela Ciência. Um exemplo foi o devastador incêndio que atingiu o Pantanal Matogrossense em 2020, causando danos irreversíveis à flora e à fauna do lugar. Além das cicatrizes na natureza, os povos daquela região também foram marcados pela destruição. 

Itinerário das Cicatrizes é um filme-ensaio que percorre os reflexos desse descaso. Gloria Albuez evidencia o dilema do homem moderno, mesclando os grandes e pequenos planos. De um lado os interesses do capital que causou o mal, de outro as vidas “pequenas” dos camponeses. Os sons e as imagens remetem sempre à desordem provocada pelo homem. Os rostos dos moradores do Pantanal são vistos ao som das labaredas de fogo; a natureza é mostrada na companhia sonora de preces e cantos indígenas. O filme é um pedido de socorro, para que possamos olhar para os marginalizados, para que tenhamos tempo de reverter o que for possível o quanto antes.

Acesse todas as informações do festival aqui.

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