Tre Piani | 2021
O que se passa por trás da porta vizinha? Sempre carregamos conosco os traços recebidos pela família, nosso primeiro aparato moral. Crescemos e percebemos que “lar” significa proteção, paredes que funcionam como uma blindagem do mundo. Fechados em nossa fortaleza, julgamos quem está fora. Por que as pessoas não foram criadas como eu? O que há de diferente? Forjamos parâmetros do que chamamos de “nosso” e “deles”, marcamos território. Mas é dentro da família que surgem os mais complexos dilemas do ser humano. As angústias se espelham, inclusive, por dentro daquilo que seria incorruptível. O que se passa por trás da minha porta? Fingimos que tudo vai bem, que as coisas ruins só acontecem lá fora. Nanni Moretti adora trabalhar com esses paradoxos da família, como já o fez em seu filme mais reconhecido, O Quarto do Filho (2001), e o continua em Tre Piani.
Três andares (tradução literal do italiano “tre piani“) de um prédio em Roma abrigam quatro famílias: Vittorio (o próprio Nanni Moretti) e Dora (Margherita Buy) são juristas e pais do jovem Andrea (Alessandro Sperduti); Mônica (Alba Rohrwacher) está grávida de seu primeiro filho, mas o marido é ausente; Lucio (Riccardo Scamarcio) e Sara (Elena Lietti) moram com a filha Francesca (Chiara Abalsamo), de aproximadamente 10 anos; por último, um casal de idosos, Renato e Giovanna (Paolo Graziosi e Anna Bonaiuto) que, por vezes, cuidam de Francesca quando os pais precisam sair. Esses quatro núcleos se misturam nesse microcosmo social que é a vizinhança. As portas fechadas escondem muito mais do que aparentam, dores que os vizinhos não imaginam ou ignoram.
Na primeira cena do filme já se consolida a rachadura que irá abrir todas as portas. Primeiro vemos Mônica, que precisa sair sozinha de casa até o hospital porque está em trabalho de parto. Depois Andrea, jovem filho dos juristas que chega embriagado e causa um acidente: atropela e mata uma mulher na rua e invade o apartamento de Lucio e Sara com seu carro. São esses os fatos que nos levarão até o final da projeção. O filho dos representantes da lei é o criminoso. Uma mulher se vê solitária no nascimento da filha pelo descaso do marido. Um casal vê sua parede em pedaços quando um carro entra no escritório e se obriga a deixar a pequena filha dormir com os vizinhos idosos.
A partir de então, Moretti transita confortável pelos temas que já lhe haviam dado glórias passadas. Os dilemas que citamos vão ganhando contornos cada vez mais melodramáticos no decorrer do filme, principalmente nas figuras paternas. Naquela noite fatídica vemos estampado no rosto de Vittorio a decepção por ver seu filho sendo irresponsável. Afinal, como se criam os filhos? Nem tudo o que lhe fora dado fez de Andrea uma boa pessoa. Certamente há algo mais nessa relação de pai e filho que ficara escondido atrás da porta. Andrea pede que o pai o favoreça em seu julgamento, já que é um sujeito de renome no setor jurídico da cidade, mas Vittorio se nega a burlar aquilo que defendeu durante toda sua vida: a lei. Ele enxerga que é necessário ao filho pagar por seus atos.
Na porta ao lado, Lucio começa a desconfiar que sua filha, Francesca, havia sido abusada por Renato, um dos idosos que cuidava da menina em sua ausência. Essa desconfiança surge quando Renato e Francesca desaparecem por algumas horas durante um passeio e são encontrados em um parque à noite. A mudança de comportamento da criança faz com que o pai fique obcecado com a possibilidade de um abuso sexual, mesmo que tudo indique o contrário. Moretti coloca todas as relações familiares de seus personagens como algo sempre falho. Há alguma coisa não contada ou mal contada. Os pais são lançados no impossível desejo de dominar e conhecer totalmente as pessoas com quem convivem sob o mesmo teto. As mães são jogadas pelos homens em condições secundárias, como Mônica que precisa criar sua filha recém-nascida sozinha. Não é diferente com Dora, que funciona como uma balança entre as intrigas de Vittorio e Andrea.
Quando se passam os primeiros cinco anos, as consequências aparecem. Andrea estava na prisão e agora é liberado. Quem o aguarda na saída é, certamente, a mãe. É ali que se rompem as relações familiares e Andrea resolve recomeçar, sozinho, a desfiliação. Nada mudou no cenário de Mônica, que permanece abandonada pelo marido enquanto cria sua filha. Além disso, agora ela precisa lidar com suas próprias sequelas familiares na relação com a mãe, que sofre de problemas psicológicos. A questão principal de Moretti são sempre os reflexos da criação familiar, aquilo que se passa de pai/mãe para filho a nível inconsciente. O medo que Mônica sente de se tornar “louca” como a mãe e não suportar a maternidade. O desespero do pai que imagina o pior de sua filha esconde seus próprios desejos mais obscuros. A culpa sempre ronda os pais. Até que ponto isso é culpa minha? Onde errei? – devem se perguntar os personagens de Tre Piani.
São necessários mais cinco anos na história para que alguns traumas sejam revisitados e superados. É esse justamente um dos problemas de Nanni Moretti: seus filmes demoram a acabar. Isso quer dizer que, mesmo com as mensagens todas já consolidadas, o diretor insiste em repeti-las. Em O Quarto do Filho já havia uma tentativa de superexploração do tema em prol de um sentimentalismo. Aqui, em Tre Piani, também. São momentos em que Moretti se dedica a atar todos os nós que se desfizeram ao longo da narrativa. Não que isso desmereça todo o filme, longe disso, mas retiram do espectador a experiência máxima dos sentimentos que presenciou em cena, já que tudo começa a se fechar por si mesmo em um quadro final extasiante.
As casas mudam, os filhos crescem e se vão, a culpa permanece. Os méritos de Nanni Moretti estão na exploração do inconsciente familiar, essa instituição moral cheia de falhas. Por mais que as portas sempre se fechem, é preciso uma leve abertura para que possamos pensar nossa própria construção. No caso de Moretti, há o dilema de ser pai, a visão do sujeito que pensa uma coisa, mas vê acontecer outra que lhe foge ao alcance. Se para os filhos a desfiliação pode ser algo tão natural, para os pais ela é dolorida e culposa. Em nosso território mais íntimo também estamos em dívida uns com os outros. O cineasta italiano sabe tratar desses assuntos, levando-os à tela com uma positiva simplicidade de elementos, mas que acaba se repetindo ao final.
Tre Piani foi visto graças a cabine de imprensa da Reserva Imovision, canal de streaming que passou a disponibilizar o filme a partir do dia 07 de julho de 2023. Vale a pena conferir!