Barbie | 2023
“Ela está bem, só está tendo uma crise existencial”
A Barbie pode não ser, atualmente, o brinquedo preferido das crianças. Mas foi o meu. Essa que vos escreve era apaixonada pela boneca, e passava horas inserida no mundo imaginário criado para ela. Por maior que fosse esse amor, ser apaixonada por essa boneca que não me representava fisicamente trouxe algumas dores. Sendo uma menina preta de cabelos cacheados, não tive acesso, à época, a uma Barbie que se parecesse comigo. Elas até existiam, mas eram escassas e mais caras. Para me sentir semelhante a esse brinquedo em que eu me projetava, por diversas vezes adornava na cabeça uma camiseta para emular um cabelo longo e liso.
Essa não é, porém, uma história triste sobre a falta de representatividade de minha infância. Fato é que brinquedos constituem e moldam uma parte importante da formação psíquica das crianças e dos adultos que elas se tornam. Homens não são criados para se tornarem pais ou realizadores de trabalhos domésticos porque, de forma geral e sucinta, não há brinquedos para meninos com essa finalidade. Nós sabemos bem de onde isso vem. Há o patriarcado, há a heteronormatividade, há um privilégio e um poder masculino a ser preservado.
Pois bem, veja-se o poder que emana de um brinquedo. Veja-se como não é exagero afirmar que ele pode ser uma arma de controle e de amarras. E de libertação. Se as bonecas e brincadeiras infantis possuem esse viés manipulador de personalidades, o que existe para o mal (a manutenção de privilégios) também pode transformar-se para o bem (a quebra das estruturas sociais dominantes). Greta Gerwig o fez. Usou da indústria que a financia para mudar esse viés.
A reflexão e a provocação de Greta Gerwig se fantasia de uma narrativa simples e que pode soar infantil (apenas por ser um filme de boneca), mas oferece muitas camadas de complexidade. A Barbie estereotipada (Margot Robbie) e todas as suas amigas Barbies vivem todos os seus dias iguais, felizes e perfeitos no mundo ideal da Barbielândia, um matriarcado onde todas podem ser o que quiserem (presidentes, construtoras, membras da Suprema Corte, médicas, sereias), e onde todas acreditam que a Barbie revolucionou a vida das mulheres no mundo real, onde o feminismo é dominante e não há mais desigualdade de gênero.
Quando a Barbie estereotipada começa a ter pensamentos muito humanos sobre morte e acorda como se tudo estivesse fora do lugar, ela coloca os pés no chão, literalmente. A partir daí, inicia-se sua jornada para que sua vida de boneca possa retornar à anterior perfeição, que a coloca de frente a um mundo muito, mas muito imperfeito – para as mulheres.
É importante que se pondere que, além de ser símbolo da infância de muitas meninas e mulheres, a Barbie como brinquedo também é uma representação do capitalismo. É inegável que, antes mesmo do filme ser lançado, o produto Barbie já vem deixando o mundo empresarial bastante satisfeito, e ultrapassa as fronteiras do mundo infantil e dos brinquedos para se tornar sapatos, camisetas, roupas, maquiagens, adereços, etc. A Mattel produziu e financiou o filme de Greta Gerwig, afinal, detém os direitos de uso da boneca. Portanto, é de se esperar que, sendo a Barbie inicialmente um objeto de consumo, a diretora compreenda que um de seus objetivos é, certamente, fazer esse produto vender. Não há meios de dissociar uma coisa da outra.
Porém, para além do incômodo que muitos podem sentir com o letreiro da Mattel sendo posto em tela de forma nada sutil, o fato de Gerwig ser plenamente consciente desse efeito e transparecer essa consciência em seu filme torna possível que ela circule no campo crítico e artístico de forma muito livre e confortável. Ela ironiza a marca, faz uso das armas do capital (criação masculina) e se apropria do produto e o reformula para torná-lo um conceito.
Greta Gerwig constrói um mundo absoluta e deliciosamente artificial, plástico, colorido e caricato, abraçando o cinema e suas possibilidades para fazê-lo, sendo notório seu controle por cada detalhe de sua composição. As casas das Barbies, representadas em uma diversidade maravilhosa, são idênticas, os carros se conduzem sozinhos. Barbies tomam café da manhã todos os dias e simulam beber e comer coisas sem jamais fazê-lo. Não há necessidade fisiológica, não há nada orgânico, não há nada que possa morrer. A Barbielândia é um ponto extravagante no meio do deserto que é a nossa mente.
Essa fantasia irônica do universo imaginado desloca-se também ao mundo real, onde grandes escritórios corporativos são caracterizados pela padronização e organização masculina, numa clara homenagem à Playtime – Tempo de Diversão, de Jacques Tati. A cineasta, ainda, encontra espaço para, como já revelado em seu primeiro trailer, referenciar Stanley Kubrick e seu 2001: Uma Odisseia no Espaço, ao impor o surgimento da Barbie como o divisor das brincadeiras de meninas que só eram ensinadas a ser mães através das bonecas bebê.
Cada elemento desse mundo sintético referencia algum produto que existe ou já deixou de existir. Midge, a boneca grávida que saiu de circulação. O cachorro que defeca bolinhas plásticas. O boneco Allan. O carro da Barbie, a piscina da Barbie. Gerwig claramente se diverte com todas essas possibilidades. O visual é realmente um espetáculo sensorial muito bem-organizado e fluído.
Quem parece ter igualmente se deliciado é Jacqueline Durran. Criadora dos figurinos de Orgulho e Preconceito (2006), Desejo e Reparação (2008), O Destino de Uma Nação (2018), Anna Karenina (2013) e Adoráveis Mulheres (2020), tendo recebido o Oscar pelos dois últimos, a figurinista se inspira nos modelos usados pelas bonecas em toda sua história, reverenciando edições limitadas e raras, recriando para nosso deleite cada peça e vestindo atrizes como Issa Rae, Emerald Fennell, Alexandra Shipp e Kate McKinnon e atores como Ryan Gosling, Simu Liu e Michael Cera.
Num mundo onde o olhar cinematográfico masculino busca atingir o hiper-realismo mesmo nos filmes de “boneco” e coloca em risco a potencialidade imaginativa, Greta Gerwig faz o oposto. Assume a boneca, a fantasia, a afetação, para expandir o criativo e usar desse fio para aproximar Barbie de nós. O caminho que leva Barbie até o mundo real é o mesmo que trilhamos em nossa jornada infantil de autoconhecimento e amadurecimento: é preciso andar de patins, percorrer um deserto, os mares, pegar um avião e encarar o que vem depois disso. É necessário se apegar ao ideal de um matriarcado como o da Barbielândia para que minimamente possamos, na vida adulta, acender e reacender o que une mulheres no mundo: a sororidade, que a diretora desperta de forma tão intensa.
O discurso feminista e empoderador de Barbie é acessível. Quando achamos que ele se esgota, se torna óbvio ou que já foi ultrapassado, é quando ele se faz mais essencial. Não há meios de se discutir feminismo e gênero sem abordar masculinidades. É esse o prato cheio que Gerwig nos dá, e que parece ter ofendido homens por aí.
A estrutura de privilégios masculinos do patriarcado causa uma cegueira oportuna. Quando Greta Gerwig escancara o que o homem não quer ver através de uma figura como o Ken, ela desafia essa masculinidade e tudo que ela preserva em séculos de estrutura. A virilidade, a heteronormatividade, a prepotência, a dificuldade de aceitar negativas, a necessidade de dominação, de disputa, de deter o conhecimento, o entendimento de que ser homem é o bastante para qualquer coisa. A imposição da maternidade às mulheres, que se tornam mães de homens mesmo sem parir, em qualquer relacionamento. A prescrição de postos sociais, a limitação dos espaços em que a mulher pode circular.
Todos os Kens de Gerwig, espetacularmente interpretados, representam essa figura dramática que é o homem quando descobre o patriarcado. É o menino que jamais brincou de ser pai, lançado numa sociedade que só lhe diz sim, que se sente dono do mundo apenas por aprender a ler as horas. A aceitação do Ken como figura viril que usa roupa cor de rosa e implora por ser visto, e que precisa aprender a lidar com seus próprios sentimentos em um mundo onde a Barbie nem sempre vai lhe dizer sim é um desafio doloroso aos homens inseridos nesse sistema.
A fala empoderadora de Gloria (America Ferrera) parece óbvia e explícita demais, mas o mundo ainda se recusa a ouvi-la. Mesmo o mais progressista dos homens vai se recusar a ouvi-la. É sua compreensão total que despertará a nós, mulheres, tal como libertou as Barbies inseridas no patriarcado que lhes tomou suas personalidades e capacidades, mas que precisa abrir mentes masculinas também. A redefinição e o empoderamento da boneca é a redefinição e o empoderamento de meninas. É geracional, é expansivo. Nada melhor do que inserir esse discurso na infância. Nada mais eficaz do que fazê-lo através de uma boneca que representa todas as mulheres em todas suas individualidades, complexidades e desejos. Aqui, com Greta Gerwig, descobrimos que ainda há esperança e respeito. Que venha o matriarcado!
Assista ao trailer aqui.