Oppenheimer | 2023

Oppenheimer | 2023

 “Agora eu me tornei a Morte, a destruidora de mundos.”

Essa é a frase que teria vindo à mente do físico Robert Oppenheimer após o lançamento das bombas atômicas contra Hiroshima e Nagazaki pelo Governo Estadunidense. Pertencente ao livro Bhagavad-Gita (canção divina), texto fundamental do hinduísmo, originalmente escrito em sânscrito e datado do século IV a.C, o poema referenciado pelo “pai da bomba atômica”, como ficou conhecido, coloca ele próprio numa posição divina, com capacidade tanto criativa como destrutiva.

O preço pago por sua autodenominada divindade equivaleu à estimadas 214 mil vidas. A primeira bomba atômica lançada em Hiroshima dizimou 140 mil pessoas, enquanto a segunda, lançada três dias depois em 09 de agosto de 1945, causou a morte de outras 74 mil, direta ou indiretamente.

A perseguição sofrida por Robert Oppenheimer depois da destruição causada por sua criação, porém, não se relacionou às mortes provocadas no Japão. Até o fim de sua vida, o cientista seria caçado pelo macartismo e taxado de traidor da pátria, uma consequência bastante humana e política para quem se tornou, como dito, destruidor de mundos.

Oppenheimer, de Christopher Nolan, chega aos cinemas brasileiros, após gerar muitos comentários sobre a dispensa do uso de CGI na recriação dos efeitos da bomba atômica, encontra seu caminho na vida de Robert Oppenheimer (interpretado por Cillian Murphy) e no Projeto Manhattan, que sob a direção do físico, desenvolveu e produziu as primeiras bombas atômicas durante a Segunda Guerra Mundial.

Lidando com um fato histórico notoriamente conhecido e dos mais assombrosos já presenciados no mundo, Nolan constrói seu filme nas minúcias do estudo humano e na obsessão mórbida das consequências geradas pela quebra dos núcleos atômicos e sua propriedade destrutiva, resultando num trabalho frenético e exaustivo, (não pelo tédio, mas pelo excesso de frenesi) por seu ritmo que não permite qualquer descanso ao espectador.

Nolan tem tendência conhecida por mastigar excessivamente os fatos narrados pela imagem e criar teorias complexas. Filmes como A Origem e Interestelar são responsáveis por inúmeros vídeos “explicados” que circundam os espaços virtuais. Em Oppenheimer, muito embora gaste diálogos intensos sobre a física nuclear envolvida na fissão que gera a explosão atômica, o diretor parece menos interessado em nos fazer compreender a teoria científica e mais empenhado em desenvolver as controversas figuras humanas que nos apresenta.

A bomba atômica é também personagem de Nolan em Oppenheimer. Toda a crescente tensão do longa é por ela causada. Experimentando mais a linguagem e aproveitando as possibilidades que os efeitos práticos lhe proporcionam, o diretor submerge o espectador nas partículas da bomba, nos coloca quase que dentro da explosão, do fogo, dos átomos de urânio bombardeados. Provoca uma atração pelo medo do desconhecido, do temido poder mortal do artefato, de sua capacidade de causar morte em larguíssima escala. O temor do poder divino em mãos humanas.

As explosões dessa bomba atômica-personagem acontecem, antes de se concretizarem no mundo real, repetidamente na mente do protagonista, o que gera uma atmosfera de paranoia e desestabilidade que muito favorece o filme por seu potencial sensitivo. Em quiçá uma das melhores cenas do filme, Dr. Oppenheimer discursa para uma equipe sombriamente comemorativa ante a explosão “bem-sucedida” da primeira bomba. Nolan esvazia esse discurso externamente caloroso e patriótico através do delírio interno do protagonista, silenciando seu redor, inserindo gritos imaginários e macabros em meio àquela euforia científica, desintegrando e despedaçando pessoas, que choram e riem na mesma medida. Há, aqui, um bom contraponto entre o status do poder político alcançado e o desejo de sua continuidade, e o oco das palavras que são pronunciadas.

De fato, o melhor de Oppenheimer reside na ausência de palavras, nas sensações dessa abstenção quando ela ocorre, o que é um tanto controverso quando estamos diante de um filme tão expositivo e acelerado. O filme todo cresce para que a experiência Trinity, o primeiro teste nuclear da história, aconteça. Todo o hype do filme gira em torno da dita explosão programada. Nolan quebra positivamente a expectativa da cena com um maravilhoso trabalho de som. Assim como ocorre durante todo o filme em seus acontecimentos mais cruciais, o teste nos é mostrado sob diversas perspectivas e pontos de vistas, num tempo que vai e retorna com essa finalidade, distribuindo a tensão e a ansiedade até atingir seu ápice. Com essa quebra, o diretor evita cair na fetichização do horror daquele acontecimento.

O ótimo trabalho de som é favorecido pela bem pontuada trilha sonora do sueco Ludwig Göransson (Oscarizado por “Pantera Negra”). A antiga parceria de Christopher Nolan com Hans Zimmer parece ter findado, e deu espaço para que Göransson, usando muito do estilo de seu antecessor, faça seu segundo trabalho com Nolan depois do fraco Tenet.

Oppenheimer pode ser dividido em duas grandes partes: os acontecimentos antes do lançamento das bombas atômicas, e depois, seus resultados. Entretanto, Nolan, como lhe é típico, não se utiliza da linha temporal contínua, trabalhando com uma mescla de fatos que vão se encaixando (e se repetindo) conforme as descobertas do espectador.

A vida pretérita de Dr. Oppenheimer antes de Los Alamos é intercalada com o experimento em si, com reuniões fechadas e autoritárias que investigam seu envolvimento com o comunismo como implicação do fim do projeto, e dentre outros acontecimentos, foca em Lewis Strauss (Robert Downey Jr), ex-secretário do Comércio dos Estados Unidos e figura-chave na escolha de Robert Oppenheimer como líder do Projeto Manhattan.

Podemos dizer, ainda, que Lewis Strauss compõe uma terceira marcação clara, não necessariamente de tempo, mas principalmente de fato e espaço. O personagem de Downey Jr (num trabalho ótimo e que claramente visa uma indicação ao Oscar) longamente nos é exposto através da fotografia em preto e branco em audiências políticas que o excesso de didatismo de Nolan faz questão de nos lembrar que não são oficialmente de julgamento, mas que fazem suas vezes extraoficialmente, revelando os estratagemas e manobras de Strauss para prejudicar o protagonista.

Vale dizer que Oppenheimer é o primeiro filme a ser gravado em preto e branco com câmeras IMAX, utilizado pelo diretor desde Batman: O Cavaleiro das Trevas. Nolan, em sua busca pelo hiper-realismo, filmou em película 70mm, cuja cópia tem cerca de 17 km de comprimento e 272 quilos. Esse formato foi pretensiosamente indicado por ele como o ideal para que o filme seja visto com a maior qualidade possível.

Grande parte dos personagens de Oppenheimer é desprezível. Afinal, é reflexo daqueles (homens brancos) que detém o poder de arriscar a destruição do mundo e decidir pela vida ou pela morte de milhares de pessoas de forma muito consciente. Entre cientistas e políticos, Nolan apresenta um elenco estelar e os encaixa em pontas de luxo, fazendo questão, inclusive, de “desafiar” o espectador a reconhecer suas estrelas apenas por suas vozes, antes de nos revelá-las. Florence Pugh, Emily Blunt, Matt Damon, Rami Malek, Tom Conti, Josh Hartnett, Casey Affleck, Ben Safdie, Gary Oldman, e figuras carimbadas como David Dastalchian e Kenneth Branagh são alguns dos nomes imponentes.

Nolan não possui um filme sequer com protagonismo feminino. Obviamente, em Oppenheimer, pelo fato histórico que referencia, não é diferente. As poucas mulheres que nos são apresentadas na obra compõem o núcleo do protagonista (a esposa e as amantes), e num filme tão dialogado, poucas falas lhes são atribuídas. Há um empoderamento de tais personagens, mas não há muito espaço para trabalhar para além dessa característica, o que é um desperdício quando se tem Florence Pugh e Emily Blunt no elenco.

Tom Conti aqui é reverenciado interpretando de forma afetuosa um Albert Einstein colocado quase como uma figura mística, um dos poucos momentos de descanso do filme. Einstein de fato era consultado por Oppenheimer durante o Projeto Manhattan, muito se discutindo ao redor do mundo a respeito da participação do físico alemão na construção das bombas atômicas. O icônico cientista foi quem advertiu o presidente estadunidense Franklin Roosevelt sobre a possibilidade de fabricação de uma bomba atômica pelo regime nazista e as ameaças que isso implicava. Essa advertência abriu portas para que o governo dos Estados Unidos resolvesse criar uma arma nuclear com pioneirismo. Esse dilema moral que permeia as descobertas científicas muito assombraram essas figuras.

Mesmo com toda a controvérsia moral e ética, o arrependimento dos cientistas quanto às suas criações, a mensagem anti bélica que pincela sobre a necessidade de colaboração e controle internacional do poderio nuclear, muito defendida por Oppenheimer, nos parece que a preocupação e discussão sobre ser fiel ou não a pátria ganhou maior importância do que todas as vidas destruídas pelas bombas atômicas. Talvez essa não seja nem uma questão exclusiva do filme de Nolan, mas da pátria que ele defende. O diretor opta por vilanizar figuras pontuais que se colocavam contra seu protagonista, quando todos ali poderiam representar alguma espécie de vilão, se há no filme essa necessidade de assim classificar.

A segunda parte do filme (se o dividirmos pelo fator temporal), o pós Hiroshima e Nagazaki, não se preza a discutir com profundidade as consequências das explosões atômicas em termos de massacre humano. Robert Oppenheimer, antes mesmo de assumir o Projeto Manhattan, já era posicionado como suspeito de integrar o partido comunista, e é essa perseguição do macartismo que ganha espaço no longa. Com o poder nuclear em mãos, os Estados Unidos não teme mais o fascismo, mas o comunismo.

O primeiro (e único) uso de bomba atômica em guerra colocou fim a um conflito mundial, mas deu início a outro. A iminência da Guerra Fria vai ganhando proporções, e a preocupação da comunidade científica com o fato de apenas uma nação ser detentora do conhecimento de uma arma nuclear mortal abre caminhos para que alguns cientistas sejam considerados traidores da pátria por compartilhar informações. Oppenheimer perdeu seu poder político em razão das ideias que defendia no que se refere à política internacional.

No festival É Tudo Verdade 2023, foi exibido o filme Um Espião Compassivo, documentário dirigido por Steve James que conta a história de Ted Hall, que de alguma forma, cruzou os caminhos de Oppenheimer. Hall foi o mais jovem físico a ser recrutado pelo Projeto Manhattan. Compartilhando dos receios quanto ao monopólio norte-americano no armamento nuclear, Ted Hall forneceu informações cruciais sobre a construção da bomba atômica para o Governo Soviético, uma espionagem que jamais foi oficialmente descoberta pelo governo estadunidense. É curioso como a figura de Hall sequer é mencionada no longa de Nolan.

A criação do Projeto Manhattan, que dizimou mais de 200 mil pessoas, direta ou indiretamente, parte de um EUA mais preocupado em punir comunistas do que assassinos e criminosos de guerra. A prepotência de ter certeza absoluta de que agiu corretamente. “O Japão vai se render, a guerra vai acabar e nossos meninos vão voltar”, era o que justificava o projeto nuclear. Christopher Nolan denuncia a gravidade do excesso de poder e as consequências de lidar com algo que talvez não devesse ser conhecido pela humanidade. É uma catástrofe nas mãos de poucos seres humanos. Por outro lado, assim como o governo estadunidense, em Oppenheimer o genocídio foi ofuscado pelos alarmes das supostas ameaças comunistas que até hoje nos sondam como forma de controle político. Vidas perdidas aqui, não encontraram muito peso dramático. O longa se contenta com a autopunição (diga-se, inimaginável) das figuras equiparadas a deuses que revelaram esse poder aos homens. Se o autojulgamento é suficiente, de alguma forma, a história dirá.  

Oppenheimer estreia nos cinemas brasileiros em 20 de julho.

Assista ao trailer aqui.

Nota:

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