Barbie | Greta Gerwig: do mumblecore ao barbiecore

Barbie | Greta Gerwig: do mumblecore ao barbiecore

Do movimento underground nova-iorquino ao sucesso blockbuster!

Barbie, novo longa da diretora, roteirista e atriz americana Greta Gerwig, mexe fortemente com o imaginário feminino, é lindamente nostálgico, até virar um incrível e satírico conto de fadas onde a boneca deixa cada vez mais seu mundo de plástico e começa a se reconhecer de carne e osso. Dentro de um micro universo cor de rosa, a diretora, junto a marca Mattel, nos proporciona um espetáculo visual cheio de menções oriundas do cinema clássico em seus cenários e escolhas de estéticas, como a criação de fundos cênicos executados com efeitos práticos e camadas, como no cinema de Georges Méliès em “Viagem à Lua” de 1902, além de momentos musicais e muitas piadas acerca do papel da boneca no imaginário feminino e em como ele  é moldado pelo patriarcado.

O filme que também conversa diretamente com a sociedade de consumo, inclusive martelando a marca Mattel tantas vezes em tela sem pudor algum, não nos deixa esquecer que o Cinema é uma indústria e que, quase sempre, divide a arte com o interesse lucrativo, principalmente dentro do mainstream. Greta Gerwig não abre mão de nenhum dos dois nesse filme. Critica o consumismo e participa ativamente de um pacto capitalista com a empresa dona da boneca Barbie, sem deixar de lado suas inúmeras referências cinematográficas e sua liberdade criativa, mostrando a importância de seu discurso.

Gerwig dá um show de bagagens gráficas e narrativas e sustenta Barbie como um filme que não está totalmente vendido, apenas está dentro do jogo que se propôs a fazer e compra essa briga. A Barbie sempre foi um objeto de desejo capitalista, um produto de valor elevado e que muitas famílias não podiam comprar, inclusive a minha. Lembro-me de brincar com Barbies “alternativas” e demorar bastante para conseguir que meus pais me dessem uma original da Mattel, empresa que, para além das bonecas, vende inúmeros outros itens que fazem parte de seu universo: peças de roupa, carro da Barbie, casa da Barbie, cachorro da Barbie, fez parcerias com grandes marcas como o McDonalds e comercializa todo esse universo cor de rosa que foi embutido no imaginário infanto-juvenil feminino através de massiva propaganda. A diretora sabe e faz uso disso! Fato que fica claro em diversos momentos do longa, onde podemos reparar que roupas são arremessadas e acabam enquadradas como produtos.

Entre menções a “2001: Uma Odisseia no Espaço”, “O Show de Truman”, “Guarda-chuvas do Amor”, “O Mágico de Oz”, “Sapatinhos Vermelhos” entre outras homenagens, e sua filmografia que sempre se importou genuinamente de tratar de questões feministas e femininas, como em “Lady Bird” (2017), quando ela se tornou a quinta mulher a ser indicada ao Oscar de melhor direção e em sua adaptação de “Adoráveis Mulheres” (2019), mostram que a diretora não caiu de pára-quedas no cinema e sabe o que está fazendo. Gerwig é colaboradora recorrente do diretor Noah Baumbach, dividindo a assinatura do roteiro e protagonizando  o longa existencialista “Frances Ha” (2012), onde ela interpreta a personagem título em uma jornada feminina muito particular, entre outros trabalhos. Essa parceria segue em Barbie, onde Baumbach, além de colaborar com o roteiro, também assina a produção executiva.

A diretora que começou sua carreira fazendo cinema “mumblecore“, (subgênero do cinema independente nova-iorquino que preza pelos diálogos naturais, às vezes feitos no improviso e que conta com atuações geralmente realizadas por atores não profissionais, fugindo aos padrões hollywoodianos), chega ao ápice de sua profissão realizando um filme blockbuster que é o extremo oposto de sua origem e histórico cinematográfico. Antes de Barbie seu trabalho de maior visibilidade foi a adaptação de “Adoráveis Mulheres”, que atingiu uma bilheteria superior a 200 milhões de dólares em todo o mundo; Barbie, em sua semana de estreia, já faturou mais de 300 milhões de dólares, chegando a maior bilheteria de um filme dirigido por mulher na história do cinema. O interessante é que Gerwig, ao dirigir Barbie, desafia todo seu trabalho e sua própria história como cineasta, lançando um filme que virou uma febre viral cor de rosa e mercadológica, que saltou das telas do cinema para o mundo real como um furacão. 

barbielandia

Praticamente todas as sessões de Barbie estão sendo contempladas por espectadores entusiasmados que chegam completamente vestidos de rosa ou com algum detalhe na paleta de cores em homenagem ao longa, imergindo na “Barbielândia” retratada no filme. Essa avalanche rosa, podemos associar ao termo fashionista barbiecore, – fenômeno que extrapolou as telas, expandindo o cinema para o cotidiano das pessoas – que consiste em se vestir como a boneca Barbie e adotar um dresscode de acordo com o universo estético em questão. Há uma apropriação dessa avalanche por diversos setores do comércio, desde restaurantes, incluindo em seus menus pratos cor de rosa, até uma vitrine qualquer, seja uma farmácia até uma barbearia, utilizando-se da cor e de motivos que remetem ao universo Barbie. 

Esse multiverso em tons de magenta, que atribuo aqui ao sucesso do filme, não vem sem uma forte carga de capital injetado em propaganda massiva e marketing agressivo em cima do lançamento financiado pela Mattel. Até em aplicativos de relacionamento, entre um deslizar para a esquerda e para a direita, encontramos propaganda do filme. É importante perceber que há uma estratégia mercadológica clara que foi completamente embutida no longa e devemos estar atentos a isso. Assim como o fato de o filmes estar tomando conta de forma massiva da programação dos cinemas, ocupando praticamente todas as salas de maneira agressiva, deixando a #Barbienheimer um tanto desiquilibrada para o lançamento de Christopher Nolan e para lançamentos nacionais.

Ao mesmo tempo que muitos espectadores vão sair da sessão emocionados e tocados pela mensagem direta e repetida diversas vezes por Greta Gerwig, uma boa parcela também sairá imediatamente afim de comprar, correr para a loja mais próxima e consumir as peças da coleção da Barbie que acabou de ser lançada por diversas marcas nos Shoppings ou encomendar uma boneca de fato, de presente para seus filhos ou para si mesmo.  

Gerwig consegue com Barbie construir um multiverso voltado para as mulheres, em meio a avalanche que vivemos nos últimos anos com o lançamento de tantos filmes de heróis da Marvel e da DC Comics, que não fogem nenhum pouco também do “secreto objetivo” mercadológico por trás da obra, para vender roupas e brinquedos. Barbie dialoga diretamente com isso e a diretora vem recebendo críticas por fazer um filme de pacto comercial explícito, mas o que ela está fazendo de tão errado aqui, se não jogar o mesmo jogo que os diretores dos filmes de heróis jogam? O que torna Barbie grandioso é isso ser feito por uma diretora como Gerwig e com seu olhar apontado para as questões as quais ela se mantém fiel. Muitas críticas soam conservadoras e não filtram ou refletem sobre como a mensagem desconstruída, que permeia toda a obra, pode e precisa existir nesse tipo de cinema.

O filme é recheado de piadas sarcásticas, tem um discurso nada polido contra o machismo e a mentalidade patriarcal embutida na sociedade. Não se aprofunda tanto na construção de muitos personagens do longa, como os demais tipos de Barbie, por exemplo, mas capricha em outros como em retratar os empresários da Mattel. Sua narrativa se preocupa mais com o desenvolvimento dos personagens da “Barbie Estereotipada” (Margot Robbie), a mulher padrão e objeto de desejo que não pode andar sem salto alto, nem se permitir aceitar suas celulites; e do seu “Ken” (Ryan Gosling), símbolo caricato do homem massacrado por seu desejo por uma supremacia masculina e sua masculinidade frágil, que não sabe lidar com a rejeição e nem com os próprios desejos. Uma importante obra que certamente vai atingir uma enorme massa de público e conversar sobre a desconstrução de uma imagem feminina pre fabricada, patriarcado estrutural e sociedade de consumo no cinema contemporâneo!

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  • Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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