Dançando no Escuro | 2000

Dançando no Escuro | 2000

Anteriormente escrevemos sobre outro filme musical, Amor, Sublime Amor, remake do conceituado diretor Steven Spielberg. Àquela época incluímos um breve adendo ao texto crítico, onde esclarecemos uma peculiaridade dos musicais que precisamos retomar aqui.

Musicais geralmente quebram com a linearidade temporal que estamos acostumados. Não se trata mais da ação e reação comum, mas o tempo para e os personagens “entram” em dança, fazendo com que um mundo onírico invada a tela. É como se o idealismo fosse parte essencial desse tipo de filme, quando a própria narrativa percebe que o mundo real não é mais suficiente para que as ações se manifestem. A mise-en-scène é extrapolada para um “parêntese”, onde o sonho se faz mais importante para o estado de espírito de determinado personagem do que a mera reação ao fato. Parte-se de uma incompatibilidade daquele sonho com a realidade, mas que, por um impulso irracional, vem à tona pela canção. É assim em Amor, Sublime Amor, com o casal Maria e Tony, movidos por um amor impossível.

Dançando no Escuro, filme escrito e dirigido pelo dinamarquês Lars von Trier, tem consciência dessa relação diferenciada com o tempo, assim, constrói sua narrativa sobre essa qualidade dos musicais. É uma metalinguagem no sentido em que a história se faz a respeito do amor da personagem Selma Jezkova, interpretada magistralmente pela cantora Björk, pelos clássicos filmes musicais e em como ela os transporta para o seu dia-a-dia. Selma é a sonhadora que não cabe mais nesse mundo e precisa entrar em dança para transformar o seu entorno de algo extremamente cruel para uma utopia sentimental. É, como já dissemos, um estado de sonambulismo, um momento em que se esconde o que há de ruim para manter uma estranha positividade, a esperança na humanidade necessária a qualquer revolucionário ou revolucionária.

Um breve olhar à filmografia de Lars von Trier já nos revela a forma como ele interpreta o mundo: pelo viés niilista da depravação. Seus filmes mais recentes, e talvez mais populares, trazem personagens que não têm mais forças para revidar o mundo. Em Melancolia (2011), por exemplo, a humanidade está à beira de um abismo inevitável, metáfora para o estado psicológico de Justine (Kirsten Dunst). Em Anticristo (2009) é a culpa que corrói a mãe (Charlotte Gainsbourg) que perde o filho e não vê mais nenhuma perspectiva para a vida. Se retornarmos às obras que precedem Dançando no Escuro, podemos citar outros dois filmes que, junto desse, constituem uma espécie de trilogia não oficial, Ondas do Destino (1996) e Os Idiotas (1998). Essas três obras comungam de um mesmo conflito: os corações puros não têm espaço nessa sociedade.

Em Ondas do Destino, Bess McNeill (Emily Watson, ganhadora da Palma de Ouro em Cannes) se apaixona perdidamente por Jan (Stellan Skarsgard). A paixão é tanta que não obedece aos preceitos racionais, fazendo com que Bess abra mão de si mesma em prol do amor. Em Os Idiotas, filme que faz parte do polêmico movimento de cineastas dinamarqueses Dogma 95, Karen (Bodil Jorgensen) é corrompida por um grupo de ideais subversivos e ambíguos, logo, perdendo sua “pureza”. Selma, de Dançando no Escuro, se aproxima mais de Bess McNeill, pois se recusa a ver a crueldade dos Homens, mas as três personagens são moldadas por uma visão utópica, criando um mundo esperançoso, onde as coisas não são tão ruins quanto aparentam.

Por mais pessimista que seja o diretor, Dançando no Escuro traz uma linha de otimismo, impulsionado por sua própria construção de gênero: o musical. Entretanto, como sua marca autoral é o niilismo, Trier só nos dá um lapso de esperança no letreiro final da projeção, depois de presenciarmos os mais cruéis sofrimentos de Selma. Antes de comentarmos sobre a derradeira mensagem, é necessário que façamos uma análise sobre como o musical e sua natureza idealista são cooptadas pelo filme. Afinal, já sabemos que na carreira do cineasta esses dois espectros são incompatíveis, não havendo espaço para sonhos.

Em pouco mais de três minutos temos a abertura do filme. Algumas manchas começam a aparecer em tela, formando desenhos abstratos que vão se alternando com a música. O som orquestrado cria um ambiente onírico, bonito. Quando o espectador começa a se embalar nesse território, um corte abrupto trata de nos jogar à realidade. Então, somos apresentados a Dançando no Escuro, porém a partir de outro filme. Selma está ensaiando uma montagem do clássico musical A Noviça Rebelde (1965). Seus passos são ainda tímidos encenando a canção “My Favorite Things” ao lado da fiel amiga Kathy (Catherine Deneuve). Lars von Trier escolhe começar sua história a partir de um musical fora da peculiaridade que destacamos. Os atores dançam e cantam não em outro tempo, mas na vida real, enquanto tentam entrar em música a partir da peça teatral. No primeiro momento, então, ironicamente, o musical não funciona (ou pelo menos a imagem não entra em sonho).

Todavia, nessa primeira cena, temos algumas chaves interpretativas que serão carregadas ao longo da projeção. Se lembrarmos de A Noviça Rebelde e da cena em que nasce “My Favorite Things”, veremos que Maria (personagem inesquecível de Julie Andrews), tenta apaziguar o desespero das sete crianças von Trapp provocado por uma tempestade. Quando as coisas estiverem ruins, basta se lembrar de suas coisas favoritas, aquelas mais banais, mas que te levam até um espaço de conforto. Vai ser esse o mote da vida de Selma. Os filmes musicais são as coisas preferidas de que ela se recorda sempre que o mundo se torna pesado. “Tudo seria mais bonito se fosse musical” – diz Selma.

Logo, somos contextualizados a respeito daquela personagem. Selma é uma imigrante da Tchecoslováquia, que veio com o filho pré-adolescente, Gene (Vladica Kostic), em busca do “sonho americano” nos Estados Unidos no início da década de 60. A memória que tinha dos filmes musicais criou em si o sonho de uma vida melhor, talvez mais “cantada”. Ela aluga uma pequena casa nos fundos da família Houston, Bill (David Morse) e Linda (Cara Seymour). O casal é o arquétipo da classe média estadunidense, pessoas que, com algum poder financeiro, se acham superiores a outras. A princípio ele parece ser um bondoso policial e ela uma amável dona de casa, ambos sempre dispostos a ajudar Selma e Gene.

Selma se dedica quase que totalmente ao trabalho em uma fábrica, onde conheceu Kathy, também estrangeira, apelidada como Cvalda (“pessoa grande e feliz”). A amizade das duas é uma crescente ao longo do filme, haja vista que é um dos poucos momentos em que Selma recebe um tratamento afetivo e verdadeiro. Na rotina exaustiva de serviço, Selma começa a sonhar. A exploração e o cansaço parecem não importar, quando os sons das máquinas ao lado começam a ritmar uma música. O primeiro esboço desse novo tempo se dá aos sete minutos de projeção, mas logo é interrompido pela realidade: “não sonhe aqui”. O filho rebelde de Selma não foi à escola e estava na rua com amigos de más influências. Representando seu papel de bom moço, Bill o recolhe e leva até a mãe. Até o relacionamento com o filho é áspero e sua rebeldia acaba decepcionando a mãe.

Enfim, descobrimos que todo esforço de Selma é justamente para o bem estar de seu filho. Todo dinheiro que acumulava com o trabalho e com os “bicos” era para a cirurgia de Gene. Ela sabia que sofria de uma doença degenerativa da visão e que seu filho teria a mesma coisa. A culpa hereditária. A mãe tenta criar o filho para ser uma boa pessoa, mas o vê caminhando ao avesso. Logo, é preciso dar tudo de si para provar ao filho que isso é realmente importante.

O coração puro faz de Selma uma ingênua aos olhos do mundo. Bill se aproveita de sua bondade quando vai até sua casa pedir-lhe dinheiro emprestado. Sabe que a jovem trabalha muito e deve ter economias, já que ele está falido e não consegue manter seu status de “homem de família classe média”. O que ele e Linda construíram foram máscaras que escondem quem realmente são. Mas Selma não vê a verdade, ela confia no outro. Explica à Bill, com toda sua benevolência, que não pode ajudar porque esconde o segredo de sua doença e da hereditariedade para seu filho. A atuação de Björk reforça essa imagem angelical de Selma, com um tom de voz que não se exalta e movimentos contidos em um figurino singelo.

A escolha de David Morse para o papel de Bill também foi acertada. Seu jeito esguio e seu olhar inocente corroboram para a falsidade do personagem. Uma cena que já nos dá indícios do que ele se tornaria no filme é quando oferece uma carona a Selma na saída da fábrica. Ele para o carro na beira de um lago para contar-lhe novamente de suas frustrações financeiras. A câmera se posiciona no banco de trás de sua viatura, nos fazendo vê-lo com Selma no banco da frente sempre através de grades, como se os dois estivessem presos, ou, melhor, como se Selma tivesse seu destino amarrado a Bill.

Devemos ressaltar a presença de outro personagem secundário na história: Jeff (Peter Stormare). Ele funciona como um dispositivo que reforça o desapego de Selma consigo mesma em prol do futuro do filho. Jeff é um chato pretendente que sempre está atrás de Selma lhe oferecendo ajuda. É um sujeito que carrega uma certa pureza, ou pelo menos um amor sincero por ela. É evidente que ele não está no mesmo nível que Selma quando se trata da ingenuidade. Quando Selma lhe conta sobre o amor aos musicais e a vida de sonhos que eles ensejam, Jeff diz não compreender o porquê de as pessoas saírem cantando e dançando no meio do filme. Ele ainda não tem o suficiente para negar a realidade e viajar até outro tempo, isso só virá a ocorrer mais tarde, levado por Selma.

Notando a urgência em pagar a operação do filho, já que se percebe cada vez mais cega, Selma resolve acelerar o processo, trabalhando cada vez mais para arrecadar mais dinheiro. É quando resolve dobrar sua carga horária para o período da noite. Dessa vez nada pôde impedi-la de entrar na imagem-sonho. O musical começa aos 39 minutos de projeção. As máquinas rimam e a música toma conta de Selma, numa bela composição do design de som. Lars von Trier faz uma justaposição muito clara nesse momento. O que estamos chamando de mundo real, aqui, para o diretor, é sempre caótico. A câmera é invasiva, inquieta, parece esmiuçar os personagens com prazer. A filmagem com aparelhos digitais reforça um aspecto sujo da realidade de Trier. Quando os números musicais aparecem não há mais o caos, mas uma ordem, como se Selma organizasse o mundo. O cineasta e sua equipe usaram, reza a lenda, 100 filmadoras para essas cenas, captando todos os detalhes sem um movimento sequer. É um paradoxo formal: o mundo real é de movimento e a dança é estática.

Como já é de costume, os momentos mágicos são cortados radicalmente por Lars von Trier. Se antes víamos o primeiro momento concreto desse novo tempo musicado por Selma, agora somos levados a reconhecer a realidade sendo mais forte. Todas as economias que havia juntado são roubadas por Bill, que, da forma mais cruel possível, se aproveita de sua cegueira. Até mesmo quando Selma é consumida pelo mundo e faz seu ato mais violento, não há rancor. Quando se vê obrigada a assassinar Bill e tomar-lhe o dinheiro roubado, sente pena. Uma das cenas mais fortes do filme é essa contraposição da atuação de Björk com a violência gráfica que presenciamos.

Mesmo depois de tudo, Selma é capaz de imaginar Bill como uma boa pessoa. A cena seguinte a morte de Bill tem uma das composições mais belas com a canção “Scatterheart”. Selma canta um mundo de inocência, onde ela diz mandar seu amor para o ladrão, seu conforto. Bill é perdoado e a acompanha na dança, mesmo depois de morto. Um pequeno toque de Selma faz com que tudo se transforme em sonho. “O que fazer depois?” – ela se pergunta. Não há culpa diante do objetivo mais puro de uma mãe: salvar o filho. Selma fez o que deveria ter feito. Trier faz questão de mostrar a bandeira estadunidense flamulando. Estamos prestes a adentrar as entranhas da justiça americana.

Os olhos de Selma que já viram tudo o que era necessário, escurecem. Não há mais o que se ver nesse mundo. O que interessa já foi conquistado. Selma tem o dinheiro para a cirurgia de Gene. Antes de ser presa, ela consegue ir até a clínica e efetuar o agendamento e pagamento do procedimento do filho. Da música somos jogados novamente à vida cruel. Selma é levada a julgamento. Já nas primeiras palavras do promotor de justiça temos uma amostra do que significa ser estrangeiro naquele ambiente. Selma não tem mais potência para se defender, ou não quer ter. Ela foi vencida pelo movimento caótico da realidade e novamente a câmera a invade e acusa. É isso que nós, seres humanos, somos, na visão pessimista de Lars von Trier.

A condenação de Selma à morte por enforcamento é a falência de qualquer afetividade. Enquanto Selma agia pelo coração, o mundo quer racionalizar e prender todo e qualquer instante de sonho. Na prisão, o que lhe incomoda é a falta de sons, o silêncio ensurdecedor. Como fazer nascer a música? Tudo é muito hostil, pálido. Selma está decidida a seu martírio para a salvação do filho, ela aceita sua derrota. O último e um dos poucos atos de humanidade para com ela acontece no corredor da morte. Uma das agentes penitenciárias, Brenda (Siobhan Fallon Hogan), é capaz de sentir o que significa tudo isso que passamos no filme, fazendo com que Selma possa criar sua música a partir dos sons que fazia. Mas, mesmo sabendo, não é capaz de impedir o fim trágico, o fim da alma pura.

O último suspiro de esperança que Lars von Trier coloca no filme dura poucos segundos. Um letreiro realiza o sonho de Selma: que essa não seja a última canção, que possamos fazer do mundo esse espaço de sonho. A câmera sobe aos céus levando sua alma à redenção. Dançando no Escuro é um retrato da hipocrisia, um abismo que nós mesmos cavamos para nos jogar dentro. Quem se salva? Se depois Trier se tornaria cada vez mais pessimista, aqui ele construiu seu mais belo filme, usando o musical em sua própria essência, fazendo com que tenhamos abertura a um tempo utópico e necessário para viver.

Antes de terminar o texto, deixamos claro nosso conhecimento sobre as acusações de abuso contra Lars von Trier, não só as que partiram da própria Björk nos últimos anos, mas de outras pessoas que conviveram em sets de filmagem com o diretor. Alegando que seu temperamento faz parte de seu “método de direção”, Trier não foi investigado e julgado. Entretanto, também sabemos que o Cinema é uma Arte coletiva e nada pode apagar o trabalho de uma equipe gigantesca para a composição de Dançando no Escuro. Ressaltamos a importância de se ter consciência desses fatos para almejarmos um pouquinho do mundo sonhado por Selma. Por fim, esperamos que as histórias tenebrosas escondidas por anos na indústria cinematográfica sejam cada dia mais explanadas.

Ouça as músicas do filme no álbum Selma Songs, de Björk.

Eles dizem que essa é a última canção, eles não nos conhecem, sabe. É apenas a última canção, se deixarmos que seja”.

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