Capitu e o Capítulo | 2021

Capitu e o Capítulo | 2021

– Juro. Deixe ver os olhos, Capitu.

Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra ideia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que…

Dom Casmurro, de Machado de Assis

Essa citação talvez seja um dos trechos mais conhecidos da literatura brasileira. Machado de Assis e seu livro Dom Casmurro fazem parte do cânone de nossa Arte, sem dúvidas. Uma obra já tão conceituada, revisitada e adaptada, pode ser motivo de receio ao se descobrir uma nova versão sua para o Cinema. O dilema do cineasta que se propõe a isso carrega a complexidade de tocar em algo tão sagrado. Até que ponto pode-se interferir no que está consolidado? Por um lado, a fidelidade ao original, de outro, as particularidades de uma nova visão na tentativa de extrair dali algo ainda não visto. Entretanto, isso não assusta o também consagrado diretor Júlio Bressane. Em Capitu e o Capítulo, Bressane faz uma bela releitura de Assis, como insere na obra os traços peculiares de seu Cinema e de sua marginalidade poética. Como ele mesmo diz, essa é uma “distorção” de Dom Casmurro.

Os olhos de cigana oblíqua e dissimulada, que há muito rondam o imaginário popular, aqui ganham os traços de Mariana Ximenes. Bentinho é interpretado por Vladimir Brichta que, desde Bingo: o Rei das Manhãs (2017), demonstra uma faceta dramática muito além das telenovelas. Enquanto ela adota uma atuação de tom inquisidor, ele concentra em seu rosto e em sua postura um ar de desconfiança. Essas são descrições que os personagens já carregam no livro, contudo, Bressane e seus atores decidem por dar-lhes aspectos menos contidos e mais intensos, traço comum de se perceber nas obras do diretor. A dissimulação do olhar de Capitu não é apenas uma descrição de José Dias, mas a própria obliquidade que rompe com aquilo que fita. A firmeza de Ximenes se contrapõe à insegurança crescente que Brichta dá a Bentinho.

A base da história também é a mesma que já conhecemos do livro: o velho Bentinho, agora apelidado de Casmurro (Enríque Días), escreve suas reminiscências sobre o relacionamento com Capitu. O que o move é a paranoia que criou para si, a respeito da suposta traição da esposa com seu melhor amigo. Entretanto, Bressane não tem interesse nessa narrativa, no sentido da tensão que ela poderia dar ao filme. O que lhe apetece é a possibilidade de explorar ironicamente a construção do ideário masculino sobre a mulher, sem apego às convenções do suspense. Seu Casmurro é aquele que conta suas memórias de uma sala infinita, uma escrivaninha em um fundo preto, envolto por uma melancólica música de violino, imaginando-se oprimido por sua esposa com olhar acusador.

No filme não temos todo desenvolvimento do romance entre Capitu e Bentinho. Isso porque Casmurro prefere lembrar do momento em que se convenceu da traição, narrando seu “martírio matrimonial”. Um plano zenital nos mostra dois homens que “conversam” numa calçada. Um deles balança a cabeça positivamente, o outro negativamente. A opinião vencedora parece ser o sim, já que no escritório de Casmurro está a cartola abarrotada daquele que afirmava com a cabeça. É um Bentinho que confirma para si mesmo a suspeita de infidelidade de Capitu. Quando voltamos ao passado é sempre para ver Bentinho perdido em meio às situações com a esposa. Logo na primeira lembrança dos dois juntos é com a esposa desenhando a sombra do marido, ou, então, aprisionando-a. Bentinho e a sombra, Bentinho e o reflexo no espelho; são detalhes que reforçam a ideia que começa a persegui-lo.

Os diálogos seguem uma forma poética/teatral que, geralmente, partem de Capitu para Bentinho. A relação com o casal de amigos, Escobar e Sancha, se torna cada vez mais misteriosa nas lembranças de Casmurro. As cenas em que ele aparece na sala escura são como um pesadelo, o sofrimento que suas memórias causam. A suspeita só aumenta. Em certo momento Bentinho e Sancha ficam sozinhos em uma sala, quando ela demonstra todo seu desejo por ele. Por mais que haja uma resistência por parte de Bentinho, a traição se concretiza. Logo na cena seguinte, Capitu está com Escobar, acariciando-o. É claro que, na visão masculina de Casmurro, ele foi quase que forçado a beijar Sancha, enquanto os movimentos de Capitu com Escobar são voluntários. Então Casmurro interrompe sua imaginação. 

Como nos diz o próprio título, o filme tem Capitu e o capítulo. Bressane dá uma importância maior às interrupções na história. A cada capítulo uma cena desconexa do filme, algumas filmagens antigas em preto e branco cortam a história para dar fim àquele ato. Na volta, a narrativa já evoluiu, os personagens e as situações mudaram. Cada intervalo é o aumento gradativo da tensão envolvendo Casmurro e a escrita de suas lembranças. 

O nascimento do filho de Bentinho e Capitu é o ponto de virada mais relevante. As roupas de Capitu se tornam mais escuras, a música mais presente. Brichta dá um ar cada vez mais desnorteado a seu personagem que, ao apresentar a criança ao casal de amigos Escobar e Sancha, apresenta-nos a sua indagação: seria dele o filho? Na sala escura a música melancólica adorna o sofrimento de Casmurro. Mas isso não ocorre apenas no tempo presente, mas no passado, quando o violinista também aparece com sua melancolia para os quatro personagens do passado. Enquanto os outros se deliciam com a música, Bentinho é torturado por seus pensamentos sórdidos. 

O som tem um papel fundamental na obra de Bressane, é um dos meios de seu experimentalismo. Além da música para ressaltar os sentimentos de Bentinho/Casmurro e ligar o presente e o passado, som de água, do corvo, da floresta, irrompem a cena para favorecer o tom onírico e poético da narrativa. Quando Bentinho decide por dar fim a vida do filho que julga bastardo, a câmera também se entrega ao delírio que não havia, em contraposição à rigidez formal de antes.

Por mais que soubéssemos a história desde o início, o cineasta, mesmo assim, consegue criar algo novo, dar a sua visão sobre o clássico de Machado de Assis. Júlio Bressane, um dos precursores do Cinema Marginal, sabe utilizar de seu experimentalismo de outrora para dar traços surreais à mente perturbada de Casmurro. Os desejos que afloram não são logicamente compreendidos, porém, são sentidos. O livro de memórias está sendo escrito por um homem que enxerga sua história de amor como a trágica traição da esposa. Toda tentativa de Capitu em manifestar-se é cortada, interrompida por um novo capítulo que vem para reforçar o delírio de seu autor e silenciá-la. Capitu e o Capítulo, de Bressane, é a ressignificação das entrelinhas de Dom Casmurro, de Machado de Assis.

O filme foi visto em cabine de imprensa por convite da Sinny Assessoria. A estreia nos cinemas brasileiro está acontece no dia 27 de julho.

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