Asteroid City | 2023

Asteroid City | 2023

Wes Anderson é um diretor que faz filmes que podemos chamar de “cinema de autor”. Facilmente identificamos suas obras pela paleta de cores, estilo cinematográfico, enquadramentos beirando a perfeição simétrica, a utilização de um elenco extenso com nomes familiares a ele e aos fãs de seus filmes anteriores e enredos que quase sempre abraçam o universo lúdico mesclado à “realidade”. Em Asteroid City, Anderson não abre mão de nenhuma de suas características mais marcantes e parece ainda mais fiel a elas, porém, transborda criatividade e sensibilidade em suas obsessões.

Em “Crônica Francesa” (2021) o diretor já vinha montando seu filme em atos bem delimitados (através das crônicas), além de utilizar encenações coreografadas e pontuadas por acontecimentos bem planejados, envoltos por cenários que se transmutam através de camadas, lembrando muito a experiência do palco do teatro. Se, em sua homenagem ao jornalismo, Anderson já mostrava apreço pela linguagem cênica teatral, em Asteroid City ele revela ter verdadeira paixão por sua forma e construção narrativa. 

Com um narrador (Bryan Cranston) em um universo em preto e branco e uma cidade-cenário em tons vívidos, existem três realidades em tela: a primeira em duotone, indicando o deslocamento narrativo da parte mais didática da concepção de uma obra, que é a escrita do texto da peça “Asteroid City”, a qual somos apresentados dos bastidores, ainda sendo concebido pelas palavras tecladas na máquina de escrever do dramaturgo (Edward Norton) e que é mesclada com a segunda realidade da presença do narrador nos moldes televisivos dos anos 50; a terceira é uma cidade cenográfica em paletas de tons veranis e refrescantes sob um céu indiscutivelmente azul e um solo desértico, repleto de cactos e elevações rochosas. Posto assim, o desenrolar da trama está concentrado na cidadezinha que virou atração por conta da queda de um asteroide que lhe abriu uma cratera e onde também são realizados testes nucleares nas proximidades.

Anderson continua primoroso ao utilizar um elenco de atores mirins extenso e carismático, como em “Moonrise Kingdom” (2012), onde as crianças tomavam a maior parte da atenção de uma forma tão eficaz que nos arrebata e transporta para micro realidades juvenis em meio ao caos dos acontecimentos. Em Asteroid City isso é contraposto também a situações de estresse, como luto, problemas conjugais, medos e insegurança. Cada personagem, pequeno ou grande, é tratado com um apego simpático pela direção, mesmo os que passam pouco tempo em tela nos parecem essenciais (feito que o diretor nem sempre consegue realizar em suas obras, como por exemplo, em “Crônica Francesa”). Anderson dispõe falas muitas vezes curtas aos personagens de Asteroid City, mas que contém linhas filosóficas e existencialistas que soam como fragmentos que darão liga a esse mosaico cênico dividido em atos.

Na cidade, algumas famílias estão presas em uma quarentena a mando do governo e convivem juntas enquanto ocorre um concurso de talentos de experimentos científicos entre as crianças-prodígio. Essa quarentena nos remete a uma assombrosa sensação de recordações pandêmicas, onde forçadamente paralisamos e esperamos (apreensivos) muito mais do que agimos de fato; e aprendemos, por bem ou por mal, a observar e compreender mais aqueles com quem coabitamos. Wes Anderson usa em sua fotografia e através também do olhar de Augie, que é um fotógrafo de guerra, uma estratégia que parece traduzir essa condição claustrofóbica em um exercício. 

Volta e meia sofremos interrupções que nos levam outra vez à realidade metalinguística do processo criativo descolorido. Somos apresentados ao diretor da peça (Adrien Brody), que se relaciona nos bastidores com seus atores e a relação deles com a obra, colaboradores e tudo que faz a engrenagem narrativa girar e que fazem os personagens que estão em Asteroid City viverem, além de seus dramas pessoais, uma experiência sci-fi no deserto. 

Anderson usa o universo fantástico mesclado a problemas humanos, transformando seu filme-peça, que trazia certo didatismo textual, em um inusitado purgatório onde as pessoas que ali convivem precisam lidar com suas dores e umas com as outras: como o menino que propõe desafios absurdos a si mesmo só para não se sentir esquecido pelos demais, as três pequenas irmãs que estão de luto pela mãe e tentam trazê-la de volta a vida, ou dois adultos despedaçados, Midge Campbell (Scarlett Johansson) e Augie  Steenbeck (Jason Schwartzman), que se cruzam e tentam recolher seus cacos, se conectando através da empatia pelo sofrimento alheio. A relação entre os personagens de Schwartzman e Johansson é feita por meio de uma comunicação verbal direta, mas com a distância segura que é comum entre dois desconhecidos. A direção evidencia essa distância na forma como interagem, em planos e contraplanos encaixotados e inversamente proporcionais, quase sempre de frente um para o outro, raramente ao lado.

Há um momento em que o ator que interpreta Augie indaga o diretor sobre não estar compreendendo a peça enquanto caminha pelo set, a orientação dada a ele é de que não importa, que ele continue repetindo o texto, pois está fazendo um bom trabalho. Aqui a mensagem é mais importante do que o meio. Ela seguirá independente da compreensão de quem a transmite e isso continua fazendo parte do contexto artístico e de seu resultado final. Amar o processo, mesmo antes de compreendê-lo. Perto do fim, os personagens repetem uma mesma frase como um mantra, porém mais do que um efeito mediúnico, me soou como um exercício de interpretação individual, reforçando a singularidade que cada ator representa.

 Wes Anderson prova que a arte é livre para expandir a imaginação e a transporta para a realidade do teatro: através da exposição do texto que lhe dá estrutura, da direção que lhe dá forma e dos atores que lhes dão vida. Seu filme, por trás de todo colorido revigorante, é uma obra metalinguística melancólica e afetiva que transcorre dramas pessoais, trata do processo de luto dos personagens e de terrores mundiais reais como a guerra e o medo nuclear. Um vislumbre hipnótico de camadas visuais e cores, postos sempre com uma sutileza peculiar ao diretor, que me faz voltar a crer no mago das telas que Anderson é, um apaixonado pela linguagem, por seus personagens e sua relação com os atores e, claro, pela forma dos filmes.

Nota:

Author

  • Mari Dertoni

    Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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