Ângela | 2023 | 51º Festival de Gramado

Ângela | 2023 | 51º Festival de Gramado

Em 2016, Hugo Prata chegava ao Festival de Gramado apresentando o seu filme “Elis”, estrelado por Andreia Horta, ocasião em que abriu a Mostra competitiva na 44ª edição do Festival. Sete anos depois, o cenário é bastante semelhante: em seu segundo longa-metragem, Prata abre novamente a Mostra competitiva com Ângela, filme também baseado na história de uma mulher potente. Em ambos, intitula seus filmes com o nome de suas protagonistas, no que vem se tornando marca registrada do cineasta.

Em Ângela, o diretor volta suas lentes à história de Ângela Diniz (Isis Valverde), socialite mineira cruelmente assassinada pelo companheiro Raul Street (Gabriel Braga Nunes) no ano de 1976, caso muito divulgado pela mídia brasileira. 

O filme inicia de forma competente contextualizando uma elite carioca que, a partir de suas estéreis festas de alto padrão, gosta de viver a ilusão de que, de alguma forma, seus atos são úteis à comunidade. Neste cenário, Prata nos insere Ângela Diniz e o seu desconforto em estar naquele meio social, um espaço cheio de “gente horrível”, como diz.

Após essa introdução, o que se percebe é um verdadeiro turbilhão de repetições de temas e uma total e desconcertante falta de interesse em trazer maior profundidade às personalidades de Ângela, Raul Street e demais personagens secundários, bem como outras temáticas que orbitam o rumoroso caso. 

O realizador visa apresentar ao espectador a imagem da protagonista como uma “mulher à frente do seu tempo” através da repetição incessante de cenas de sexo e imagens de festas em que Ângela aparece dançando com vários homens, o que, definitivamente, não é uma boa escolha por refletirem uma opção mais cômoda da direção e que opta por ficar no raso. 

Ainda que, parcamente, se traga aspectos do primeiro casamento de Ângela Diniz: seu problemático divórcio, o sofrimento que não ter a guarda de seus filhos lhe causa e até mesmo uma brevíssima citação em relação a quão sexista é o Judiciário brasileiro da década de 1970 (e ainda hoje), nada pareceu ser  suficiente para trazer “mais estofo” à trama.

Toda a liberdade pregada por Ângela Diniz, no que refletia em vários aspectos de sua vida e lhe fazia atrair a fama de “polêmica”, por enfrentar toda a moral machista da época, acaba por ser retratada de uma forma simplista e aquém do que a potência da protagonista precisava.

Isis Valverde tenta imprimir à personagem um peso e uma força que não são acompanhados pelo pobre roteiro que tem à disposição. Enquanto pode-se dizer que a atriz “fez o que pôde”, ao ator Gabriel Nunes coube fazer um unidimensional personagem que, ao longo de sua relação amorosa com Ângela, se comporta de forma muito violenta por conta de ciúmes, no que culmina com o trágico acontecimento: em uma discussão, acaba por assassinar sua companheira com três tiros. 

Para além de ser um caso que, presume-se, o público já conheça o desfecho, o filme abusa de uma repetição de cenas em que Ângela, imersa em um relacionamento abusivo, sofre uma série de violências psicológicas e físicas, não teria outro fim, senão a sua morte violenta. 

Outra opção importante de Prata é a de não trazer firmemente no enredo do filme questões afetas ao julgamento de Raul Street, no que opta por fazer através de sucintas mensagens que antecedem os créditos finais. Raul Street (também conhecido como Doca Street) foi, em seu primeiro julgamento, defendido pelo célebre advogado criminalista Evandro Lins e Silva que, na ocasião, utilizou como estratégia de defesa o uso da tese da “Legítima Defesa da Honra”. Em síntese, esta tese afirma que o delito estaria justificado se o comportamento da vítima/mulher ofendesse a honra do homem/acusado. 

A partir da alegação da Legítima Defesa da Honra, que tem como fértil terreno as sociedades autoritárias e machistas, Raul Street recebeu uma pena considerada muito baixa pela sociedade brasileira, razão pela qual grupos de mulheres, insatisfeitas com a decisão judicial, realizaram inúmeras campanhas, na qual entoavam a marcante frase “Quem ama não mata”: em um segundo julgamento, Raul Street foi condenado a quinze anos de prisão.  Como dito, tudo isso é colocado na tela de forma sucinta e por meio de pequenos textos escritos. 

O filme, que poderia ser sobre o machismo da época e como ele matou Ângela Diniz e tantas outras mulheres, acaba por isentar-se de tratar deste tema, cuja relevância e atenção para a sociedade brasileira não acabou. Uma prova disto é o fato de o Supremo Tribunal Federal, em março/2023 no julgamento da Arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 779, ter definido que o uso de tal tese de defesa atenta contra o princípio da dignidade humana e da igualdade entre os gêneros.

A importância de Ângela Diniz como personagem é mal explorada por Hugo Prata, que faz com que seu filme seja, quase que exclusivamente, sobre ela sofrer recorrentemente com os abusos perpetrados pelo seu companheiro, até a chegada de seu assassinato.  

O filme deixa de explorar  diversas temáticas ínsitas à história de Ângela, uma história que reverbera até a atualidade, mas opta por ficar “no meio do caminho” de todos os grandes temas que poderia enfrentar, alcançando uma infausta superficialidade em tudo que se propõe.

Ângela foi assistido no 51º Festival de Cinema de Gramado.

Nota:

Author

  • Eduardo Gouveia

    O representante do Pará no Coletivo Crítico que, entre o doutorado em Direito e os jogos do Paysandu, não dispensa uma pipoca para comer, uma Coca Cola gelada para beber e um bom filme para ver.

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