Tia Virgínia | 2023

Tia Virgínia | 2023

Em seu segundo longa-metragem, Tia Virgínia, o cineasta Fábio Meira filma partindo da dinâmica de sua própria família, mas conseguiu atingir em cheio a família de tantos espectadores. O que, no início, partiu de uma pretensão de se contar algo pessoal, fez com que, ao fim, se abordasse uma história (quase) universal, possibilitando uma conexão emotiva de boa parte do público.

Tia Virgínia se passa em aproximadamente vinte e quatro horas, mais especificamente, nas horas do dia de Natal, ocasião em que várias famílias se reúnem para comungar da Ceia: não é diferente naquela família. Vera Holtz interpreta Virgínia, uma mulher já idosa, que nunca casou ou teve filhos, ficando  encarregada de cuidar de sua mãe enferma, tendo, para isto, sofrido pressão das irmãs para voltar para a casa onde passaram a juventude.

É no contexto de reunião natalina que a família se reúne (com a exceção do falecido patriarca), vinda de diferentes lugares: Vanda (interpretada por Arlete Sales) chega acompanhada de seu marido (Antônio Pitanga) e sua filha (Daniela Furlan); Walquíria (Louise Cardoso) chega na sua casa acompanhada de seu filho (Iuri Saraiva). 

Assim, com as linhas mestras da narrativa expostas ao espectador, percebe-se que Virginia, como o próprio nome do filme traz, “ficou para titia”, não se vinculou aos padrões exigidos pela sociedade. Quantas mulheres conhecemos que passaram a “encarnar” este papel de “titia” e que, por não se casarem, acabam sendo relegadas a cuidar dos pais idosos, sem conseguir  se desvincular da casa onde passaram suas vidas 

A reunião destas destas três irmãs forma o caldo de cultura necessário para nutrir o filme em diversas frentes, mas a que se sobressai, sem dúvidas, é a de um poderoso drama familiar que claramente bebe de fontes como Ingmar Bergman e Anton Tchekhov.

Há algo de muito poderoso no encontro destas irmãs e, também, destas grandes atrizes brasileiras cujo entrosamento em cena chama atenção e faz com que o longa-metragem atinja um outro patamar. Vera Holtz está primorosa no papel da personagem título, no que é acompanhada por atuações excepcionais de Arlete Sales, Louise Cardoso e Antônio Pitanga. A própria mãe do trio, que surge em cena em seu corpo muito debilitado, é interpretada por Vera Valdez, atriz e modelo brasileira de bastante destaque nas décadas de 50 e 60.

Virgínia parece aguardar o momento em que, reunida com as irmãs, decide expor seu inconformismo com a posição que lhe foi dispensada, que, invariavelmente, perpassa por uma série de privações pessoais e sacrifícios de planos de vida, enquanto suas irmãs puderam ter toda a liberdade para agir conforme quisessem.

Em vários momentos são expostos diversos ressentimentos que cada irmã nutre, com referências a situações ocorridas já há muitos anos e que não são esquecidas facilmente por quem sofre. Nas cenas em que são ressuscitados estes dramas familiares e dores do passado, há um peso e uma força nas atuações do trio feminino que são dignos de muitos elogios.

É muito interessante notar também como Vanda e Valquíria, ao retornarem à casa em que passaram boa parte de sua vida, não a veem como a casa de sua mãe e Virgínia, mas sim como (ainda) sua própria casa, razão pela qual se sentem muito confortáveis em alterarem a dinâmica do local, interferindo na vida de Virgínia como se, a ela, não coubesse qualquer tipo de decisão.

 Percebe-se, assim, uma própria deslegitimação daquele papel (culturalmente feminino) tão desgastante e invisibilizado assumido por Virgínia: cuidar da saúde da mãe e deixar a casa impecável, no que nunca parece, aos olhos do restante da família, um papel bem executado. Afinal, como diz Valquíria “o quarto da mamãe está cheirando a xixi”, enquanto que seu filho se irrita com o presépio montado, alegremente, por Virgínia para o Natal. 

Neste microcosmo, tem-se que a própria Casa passa a ser também um personagem. E aqui, o trabalho de direção de arte de Ana Mara Abreu e direção de fotografia de Leonardo Feliciano também merecem louvores, por fazerem com que a Casa tenha uma personalidade, um interessantíssimo caráter anímico que interage com os demais personagens. Relevante fazer referência, também, às inteligentes estratégias de Fábio Meira para fazer com que algumas situações fiquem apenas no subjetivo do espectador, no que as paredes da construção impedem aquele “saber literal” do que estaria ocorrendo. 

A força do longa-metragem reside na exposição desta tragédia familiar, justamente no que há de mais profundo: os ressentimentos, as brigas, as privações assumidas em prol do bem-estar familiar, a dinâmica daquelas relações e o afeto que também há entre as irmãs.

Ainda que o clima seja pesadíssimo e as relações entre aqueles familiares sejam minadas por inúmeros problemas anteriores, mas também sustentadas por o amor que nutrem entre si, o cineasta cria espaços que evidenciam mais um aspecto que, por certo, também ensejará a identificação de muitos: a tentativa de “se passar por cima” daquilo tudo, de não lidar com as dores, com os remorsos e ressentimentos, que é cristalizada em uma excelente cena em que Vanda, ante a uma situação complexa, recorre ao “amanhã a gente conversa”. 

O diretor visa entremear ao denso drama algumas saídas cômicas que não se conectam adequadamente ao filme. As partes de humor, em sua grande maioria, se relacionam a aspectos bastante tristes ocasionados pelas doenças de alguns personagens, no que confesso ter sentido certo desconforto ao ouvir gargalhadas em cenas em que, por exemplo, se explora a incontinência urinária da debilitada matriarca da família e o elevado grau de demência enfrentado pelo personagem de Antônio Pitanga, que compreende de forma totalmente equivocada as situações em que está situado.

Contando com uma sequência final memorável, Tia Virgínia é um drama familiar de peso, muito bem construído e dirigido por Fábio Meira que conta com um elenco afinadíssimo (com destaque absoluto a Vera Holtz) para contar uma história que tem o condão de se conectar de forma profunda com boa parte do público.

Tia Virgínia foi assistido no 51º Festival de Gramado, e será exibido na 47ª Mostra Internacional de Cinema São Paulo.

Nota

Filme visto através de nossa cobertura da 47ª Mostra de Cinema de São Paulo, acompanhe tudo aqui

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  • O representante do Pará no Coletivo Crítico que, entre o doutorado em Direito e os jogos do Paysandu, não dispensa uma pipoca para comer, uma Coca Cola gelada para beber e um bom filme para ver.

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