Agitação | 2022

Agitação | 2022

Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios…

Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida — a verdadeira —
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.

Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.
E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguém — ao voltar a si da vida —
acaso lhes indaga que horas são…

Mário Quintana

Pode-se dizer que, desde épocas imemoriais, o tempo foi um objeto de pesquisa e profundo interesse da humanidade. Se na Bíblia tem-se que “para tudo há uma ocasião, e um tempo para cada propósito debaixo do céu” (Eclesiastes, 3:1-8), os Gregos o dividiram entre “Chronos” (o tempo cronológico) e “Kairós” (o tempo espiritual/afetivo). O físico alemão  Einsten provou que ele é relativo e, ainda hoje, há grande produção intelectual que se debruça sobre tão fascinante temática, no que menciono importantes (e atuais) livros como “O Aroma do Tempo” de Byung Chul-Han e “O Elogio da Lentidão” de Lamberto Maffei

Ainda que possuindo destaque, cumpre-se dizer que tempo não é a única questão a ser explorada por Cyril Schäublin em seu “Agitação”, filme que lhe fez ganhar o prêmio de “Melhor Diretor” da mostra “Encounters”  da Berlinale de 2022 e o prêmio de melhor filme internacional no festival de Jeonju, no mesmo ano.

O longa-metragem traz em sua narrativa a vida em uma  localidade da Suíça do século XIX denominada Saint-Imier, que abriga um pulsante centro de fabricação de relógios. É a partir deste contexto que o diretor, de forma hábil, explora diversos aspectos da forma de trabalho que ali se desenvolve, das ideias políticas que começam a ganhar força dentre os trabalhadores e a tensão que há entre as classes sociais ali ocupantes, o que fica mais claro no interior do ambiente da fábrica. 

São notadamente temáticas sensíveis que, ainda hoje, causam inquietação. Contudo, o diretor suíço faz com que o percurso de 92 minutos de seu filme transcorra sem confrontos virulentos e sem qualquer violência irrefletida. Pelo contrário, as falas e gestos são absolutamente demarcadas e racionais, conferindo um controle evidente de cada ação ali tomada, dando uma cadência peculiar ao filme e é aqui que ele encontra um dos seus problemas: o flerte com um maçante ritmo demorado, o que prejudica a experiência de assisti-lo. 

Tendo como um dos seus personagens Pyotr Kropotkin (Alexei Evstratov), na ocasião, ainda um cartógrafo, Schäublin chama atenção por trazer um dos mais célebres anarquistas do mundo ainda em uma fase prévia à sua mundial notoriedade e, também, prévia à sua militância mais entusiástica, por assim dizer.

Em alguns momentos de Agitação, nota-se o cuidado de se trazer de forma  absolutamente didática questões como a diferença que há entre o anarquismo e o comunismo, bem como esclarece a Comuna de Paris, o que para a narrativa é algo deletério, cumpre um papel importante para situar o espectador menos versado na matéria.

Tudo é muito bem delimitado, traçado, cadenciado, o que se relaciona com a tirania do tempo nos atos da vida cotidiana. O rigor do tempo é indelével. Naquele contexto, isso fica absolutamente evidente, com as tarefas dos trabalhadores sendo cronometradas a todo instante, desde o tempo gasto na montagem de um relógio até mesmo o tempo que levam para chegar no seu posto de trabalho. Tudo em nome da eficiência tão aliada ao “tempo rápido”, ao tempo acelerado.

Há, inclusive, uma questão muito interessante naquela cidade, pois a localidade se guia, internamente, por “tempos” diferentes: há o tempo do trem, o da fábrica, o da Igreja e o do serviço telegráfico. Ou seja, há uma imensurável tentativa, permanente, de se controlar os corpos a partir do tempo, mas não se tem uma definição “de qual tempo” seria, o que se aproxima, de forma elegante, da noção de sua própria relatividade, que viria a ser “revelada” cientificamente  anos depois.

No que concerne à linguagem cinematográfica utilizada pelo diretor suíço, se destacam os maravilhosos (e heterodoxos) enquadramentos, ocasiões em que os atores e atrizes (em sua maioria não profissionais) são posicionados na extrema lateral da imagem que é ocupada, em seu centro, quase sempre por troncos de árvores e arbustos. Há também um uso recorrente de cenas em que várias ações se oferecem simultaneamente ao espectador, no que se nota uma bonita referência ao cinema de Jacques Tati

Do ponto de vista político, há um discurso combativo sendo exposto de forma serena e que permanece perene aos trabalhadores daquele local, no que fica claro à regular marginalização dos mais pobres que são alijados dos espaços de poder e de escolha; que são presos por não pagar impostos; que são cada vez mais explorados ante a lógica do capital. Ainda que Agitação retrate um contexto do século retrasado, algumas coisas não mudaram no capitalismo, como o controle ferrenho dos corpos dos trabalhadores e a utilização de um tempo rápido/acelerado como condição necessária para a maior lucratividade.

A ausência de discursos inflamados de combate ao capitalismo dá lugar a bonita amizade e rede de apoio que os anarquistas montaram e que, através de votações feitas de maneira informal  no próprio local de trabalho, referendavam o envio de dinheiro para anarquistas que estavam passando por dificuldades em outros países, enquanto que os grandes empresários lamentavam  a perda de mercados estrangeiros, Schäublin faz  um arguto contraponto entre a camaradagem dos trabalhadores versus a concorrência desenfreada ínsita ao capitalismo.

Agitação  possui um notável refino técnico e trata a questão política de forma bem peculiar em relação ao que comumente se vê no Cinema. No mais, a falta de desenvolvimento dos personagens e o seu ritmo demorado (que tem utilidade para as intenções do autor) dificultam a experiência que é assisti-lo, tornando-a enfadonha em grande parte do tempo.

Agitação, de Cyril Schäublin está atualmente no catálogo da MUBI

Nota

Author

  • O representante do Pará no Coletivo Crítico que, entre o doutorado em Direito e os jogos do Paysandu, não dispensa uma pipoca para comer, uma Coca Cola gelada para beber e um bom filme para ver.

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