Mami Wata | 2023 | Mostra de Cinemas Africanos
Não só na diáspora africana, quando aproximadamente 11 milhões de pessoas foram violentamente retiradas de suas terras de origem e transportadas para as Américas, é que buscou-se apagar por definitivo suas raízes identitárias, costumes e histórias. A cultura ocidental do homem branco ainda tenta propagar-se de forma dominante a todo custo, sobrepondo-se a tudo que lhe parece diferente.
Mami Wata, longa nigeriano de C. J Obasi, abriu a Mostra de Cinemas Africanos 2023, em São Paulo. Aqui, com elegância e rigor absolutos, o diretor confronta, através do folclore da Deusa que dá nome ao filme, o conflito entre a preservação dos costumes e crenças que formam a identidade de um povo, e a cultura ocidental, caminhando ainda por terrenos frágeis ao abordar o clamor pelo dito “progresso” e a necessidade de autoproteção identitária.
Obasi situa a crença na Deusa no vilarejo harmonioso de Iyi, que é guiado e liderado por Mama Efe (Rita Edochie), a mediadora religiosa e política daquele local. É Mama Efe quem cura doentes, recebe oferendas e as entrega à Deusa, que retribui com bênçãos aos seus devotos. Entretanto, o equilíbrio de Iyi é ameaçado quando, diante de uma tragédia, a fé em Mami Wata e sua mediadora começam a ser questionadas.
Se deslocando do cinema de Nollywood, Mami Wata é de um estilo visualmente muito impressionante. O cuidado milimétrico e até cerimonial de cada plano, de cada gesto rigorosamente controlado, aliado ao minucioso trabalho de maquiagem e figurino, que exalta a beleza incomparável do elenco, tornam tudo muito elevado, espiritual e hipnotizante.
Esse controle que une elementos em Mami Wata é fruto do trabalho conjunto de Obasi com a diretora de fotografia brasileira Lílis Soares. A obra recebeu o prêmio de melhor fotografia no Festival de Sundance de 2023. O contraste bem marcado entre o preto e branco, que tonaliza tudo de forma extrema, transforma o branco num neon belíssimo, sobretudo quando impresso nos desenhos faciais dos personagens. Há um jogo muito estratégico de luz e sombras que contribui para construir essa atmosfera mística e milimetrada.
Para além da oposição entre as coisas do Ocidente e proteção de tradições, Obasi contrapõe ainda as lideranças femininas e masculinas. O equilíbrio do vilarejo se mantém graças à Mama Efe e a confiança do povo que a segue, o que se estende também às suas filhas, Zinwe (Uzoamaka Aniunoh) e Prisca (Evelyne Ily).
Embora haja questionamentos e autocríticas importantes por parte das próprias filhas, há um poder feminino místico que as une num entendimento ancestral sobre a importância da manutenção daquela cultura. “Você deve temer as mulheres”, é a fala de Prisca em determinado momento conflituoso de Mami Wata. O poder emanado desta fala, direta como todo o roteiro, é o bastante para que se sinta a força daquele matriarcado.
Mami Wata guarda e faz transparecer o respeito que tem a si mesmo. O rigor extremo das composições e imagens e a solenidade com que o longa é montado é tão equilibrado que não há necessidade de um discurso prolongado, que ali parece ser por todos bem compreendido. É valioso demais quando a imagem fala por si só.
Mami Wata será exibido na Mostra de Cinemas Africanos ainda nos dias 11 e 12 de setembro, no CineSesc (São Paulo).