Retratos Fantasmas | 2023

Retratos Fantasmas | 2023

“Cinema é a maior diversão”.

Kleber Mendonça Filho nos presenteia com um documentário sobre o Cinema, partindo de sua forma mais primitiva, a partir do resgate de arquivos pessoais e memórias próprias, que, assim como em outras de suas obras – “O Som Ao Redor” e “Aquarius” –, se desenvolve de um ponto de vista sempre muito pessoal e intrinsecamente ligado a sua relação com a cidade de Recife – Retratos Fantasmas consegue ser a mais pessoal delas. Mesmo assim, o diretor recifense consegue despertar a identificação com o espectador amante da sétima arte, ainda que não seja morador de lá, ainda que não tenha vivido o suficiente para ter recordações dos cinemas de rua e das ocupações cinematográficas pela cidade como havia “antigamente”. 

A transformação sofrida na cidade natal de Kleber não foge tanto às transformações que outras cidades também enfrentam. Falando-se especificamente de salas de cinema de rua, a minha cidade (Rio de Janeiro) também tem sofrido com fechamentos de espaços importantes para nossa memória como consumidor de filmes, que foram janela de exibição importante para realizadores conseguirem mostrar suas obras. Como por exemplo, o Roxy em Copacabana, inaugurado em 1938 e que até 1991 era o maior cinema do Brasil, com capacidade para 1.700 pessoas, fechou suas portas em 2021 em decorrência da pandemia. Houve o fechamento do enorme Cine Odeon na Cinelândia, no Centro do Rio, uma sala gigantesca e luxuosa, que encerrou suas atividades e passou apenas a abrigar eventos como o Festival do Rio e sessões de gala. Ambos espaços fazem parte do Grupo Severiano Ribeiro

Essa sequência de fechamentos eleva cada vez mais o “cinema de shopping” como o cinema que é levado a sério pelas empresas, que consegue financiamento sólido para manter, que detém o poder midiático de propaganda para direcionar o consumidor a ver os filmes do circuito comercial, reduzindo drasticamente as chances de obras menores e produções independentes, principalmente nacionais, chegarem a mais gente e terem sequer um tempo digno de exibição em uma sala de cinema.  Mérito que o cinema de rua carrega e que Kleber enxerga e discute nas entrelinhas afetivas de seu filme.

Retratos Fantasmas, antes de entrar a fundo na questão da mudança estrutural e mercadológica que Recife enfrenta nesse sentido, na qual lugares históricos onde se consumia cultura passam a abrigar igrejas, fazendo inclusive uma bela analogia entre o cinema e o templo, elevando ao status de “sagrada” a cinefilia ao comparar com a paixão dos devotos religiosos, Kleber usa partes de imagens descartadas na finalização de seus filmes para ilustrar o quão pessoal sua relação com a construção deles se dá. Quando percebemos que sua própria casa fora transformada tantas vezes em set de filmagem, isso fica claro. A intimidade com o ambiente, com a rua, com as paredes e os cômodos, com os atores que escolhe trabalhar. Uma das partes que mais me emocionou foi saber que o pedaço de madeira com cupim usado na icônica cena de “Aquarius” protagonizada por Sônia Braga, fazia parte da casa abandonada de seu vizinho. Tudo está entrelaçado e tudo tem uma grande carga de história. 

Kleber insere imagens fantasmas em seu filme, essas imagens são como pequenos sustos, por vezes desconexos, mas que emendam esse documentário que, por mais parecido com a verdade que possa ser, sabemos que nenhuma obra é isenta de manipulação, pela visão da direção, pela montagem, pela trilha sonora, etc. Nos interessamos pelo “real”, mas a realidade fantástica ou “fantasma” sempre se fará presente, e nesse sentido, Kleber brinca com a afirmação de que “filmes de ficção são os melhores documentários”. Todo filme registra um cenário, uma rua, um prédio, um parque, que décadas depois podem não estar mais lá, ou serem drasticamente modificados. O filme de ficção que captura tais cenários, automaticamente os documenta e é divertido pensar assim. 

Retratos Fantasmas teve suas pré-estreias realizadas em cinemas escolhidos a dedo por Kleber e sua equipe, primordialmente em cinemas de rua ainda resistentes. Eu tive a sorte de poder assisti-lo em uma sala que fez parte da formação e da juventude do diretor, no Estação NET Botafogo em uma sessão onde ele compareceu junto à equipe do filme e pode relatar a importância de estar ali e exibir seu filme exatamente ali. Antes disso, Retratos Fantasmas foi exibido no Cine Odeon, que cito no começo do texto, cinema que está fechado para o circuito comercial e que abrigou muitas edições de festivais  importantes na cidade. Acredito que a força do novo filme de Kleber esteja nesse resgate e nessa chamada que sua relação com os filmes e as salas traz, nos alertando que o Cinema (tanto seus lugares físicos, quanto obras) está vivo e que devemos continuar ocupando seus espaços. 

Há um momento em que Kleber dá voz a um senhor que trabalha há muitos anos como projecionista em um antigo cinema de Recife e ele está visivelmente devastado com o fechamento do local e comenta: “eu vou fechar esse cinema com chave de lágrimas”.  No cinema onde eu assisti Retratos Fantasmas, o projecionista viu essa cena emocionado do alto de sua janelinha da cabine de projeção, possivelmente identificando a própria história, não em Recife, mas aqui no Rio de Janeiro, talvez até com medo e com a lembrança ruim de que o Grupo Estação passou, há pouco tempo atrás, por um sério risco de fechamento de portas e despejo por uma dívida com o Grupo Severiano Ribeiro. É o Cinema que transcende espaços, que atinge camadas impensáveis e resiste. 

Nota:

Author

  • Mari Dertoni

    Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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