Estranha Forma de Vida | 2023

Estranha Forma de Vida | 2023

Não há como negar que o western seja um gênero eminentemente masculino em muitos sentidos. Filmes feitos por homens, sobre homens e para homens, dotados de uma veia moralista fortíssima, colonizadora, geralmente opressores de minorias, usualmente exaltadores de masculinidades. Obras feitas e voltadas ao homem branco, cis e hetero, que criaram personagens icônicos justamente pela sustentação dessa figura opressora. Invariavelmente, o cinema criou figurões cuja combinação cowboy + cavalos + armas tornou-se referência do que há de mais heterotop. Foi, de fato, reflexo de seu tempo e lugar.

É indiscutível, entretanto, que trata-se de um gênero cinematograficamente maravilhoso e extremamente valioso. O western trouxe ao Cinema os contrastes dos espaços e paisagens a perder de vista com o ser humano minúsculo que quer desvendá-las. Abraçou temas que adoramos ver nas telas. Fez nascer poetas da imagem. Trouxe reflexões muito humanas sobre essa violência toda que lhe é própria.

A beleza do Cinema reside no permissivo de reinventar gêneros cuja base primitiva não encontra mais lugar no mundo. A tendência de apropriação do western por cineastas que jamais teriam espaço para fazê-lo durante sua era de ouro torna possível ao gênero transitar por espectadores que não os usuais homens-brancos-cis-hetero. Com a Estranha Forma de Vida, Almodóvar se junta à Jane Campion e Kelly Reichardt e (re)cria o western a partir de sua própria visão, ainda masculina, mas muito distante da heteronormatividade.

Narrando uma história inspirada nos próprios escritos do diretor, que mantém como hábito prático a anotação de possíveis cenas que podem, em algum momento, encontrar seus lugares, Almodóvar trabalha com Ethan Hawke e Pedro Pascal para dar vida aos protagonistas Jake e Silva. O primeiro é xerife de uma cidade desértica. O segundo, um rancheiro. Após 25 anos, eles se reencontram e revivem o passado que tiveram juntos. Entretanto, os deveres da lei se mostram maiores do que o sentimento que nutrem um pelo outro.

Os personagens de Hawke e Pascal são antagônicos. Jake parece ser o típico xerife, zeloso no cumprimento de seu dever, leal às promessas de justiça e à família, taciturno. Silva é mais livre, mais cheio de vida, um aparente livro aberto de sentimentos. Se algo os conecta para além da atração e do sentimento mútuo, é o zelo familiar. No reencontro dos personagens, a proteção à família é o obstáculo. Aliás, a química de Hawke e Pascal é absurda.

O antagonismo entre os personagens é bem situado nas cores atribuídas a cada um. Almodóvar, aqui, não abandona seu gosto pelas cores vibrantes. Embora mais discretas, seu uso pontual em meio ao deserto e às ambientações mais escuras saltam para manter sua marca. O verde e o vermelho predominam principalmente em Silva, o que colabora para torná-lo um personagem muito mais iluminado que Jake, que se esconde por detrás de roupas escuras, mas que guarda tons de vermelho que vão sendo revelados na medida em que se entrega à sua paixão.

Esse vermelho, porém, logo transita da paixão para a violência, remetendo à sua iminência. A colcha da cama de Jake, tão bem demarcada por Almodóvar para revelar o desejo dos personagens, na manhã seguinte ganha um tom mórbido junto a um diálogo de desconfiança entre eles.

Vale dizer que Estranha Forma de Vida foi feito em colaboração com a grife Saint Laurent. Além de responsável pelo figurino, a marca produz o curta. O diretor revela, em uma longa entrevista exibida após o filme (certamente maior que a própria obra) que a ideia também nasceu de um pedido da grife por um trabalho conjunto, o que fez o diretor imediatamente vasculhar essa história em suas anotações.

Ainda que o western seja um gênero de exteriores, de planos abertos, de vastidões diante da pequenez humana, Almodóvar parece se interessar menos por paisagens e mais pelas figuras que filma. A maior parte de Estranha Forma de Vida se passa no interior dos quartos dos personagens, o lugar onde não há intimidade a ser ocultada. É curioso como esses cômodos são guarnecidos por retratos e pinturas de casais hetero que remetem ao conservadorismo que ele nega.

Faz, ainda, um western queer sem recorrer às cenas de nudez ou sexo. Não se interessa pelo entrelace de corpos, mas sim por olhares genuínos e pela exposição de sentimentos através do diálogo intencionalmente expositivo. É revolucionário que se possa ver em tela homens capazes de expor sentimentos. É ainda mais revolucionário que possamos ver gays o fazendo, num mundo em que a homofobia insiste em os querer silenciar.

Na entrevista mencionada previamente, e que poderá ser prestigiada também nos cinemas, Almodóvar referencia Ira Sachs (Passagens) como um dos diretores da atualidade que mais livremente filma com beleza o sexo homossexual, e principalmente, o sexo entre pessoas mais velhas. Essa recusa do cinema em representar o desejo sexual de pessoas com mais de 50 anos é um tabu que Almodóvar parece ter muito empenho em quebrar.

Almodóvar subverte não só por usar das masculinidades do gênero para construir tensão sexual entre dois homens, mas também por criar a partir daí um de seus filmes mais afetivos e delicados. Nada mais masculino do que a linha tênue colocada entre a violência e a paixão. Nada mais Almodóvar do que se apropriar disso tudo e impor seu cinema. Por mais, mas muito mais western queer e feitos por mulheres nesse mundo!

Estranha Forma de Vida estreia nos cinemas em 14 de setembro, com distribuição da O2 Play e Mubi.

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