Oldboy | 2003
“Ria, e o mundo rirá com você. Chore, e você chorará sozinho”.
São nos momentos de solidão que a consciência pesa. Obrigado a lidar consigo mesmo e com seus pecados, o solitário é um prisioneiro de suas próprias escolhas. Diria o filósofo francês Jean-Paul Sartre que a responsabilidade de nossos atos e suas consequências recaindo sobre o pensamento são o maior fardo que o ser humano pode ter. Em Oldboy, Oh Dae-su (Choi Min-sik) passa quinze anos em uma “análise de consciência forçada”. Trancado em um quarto e sem saber os motivos de estar ali, ele vive seu limbo anotando o nome de todos aqueles que talvez tenha ofendido com suas ações. Mas, afinal, quem o teria encarcerado por tanto tempo? Que ofensa seria essa capaz de causar tanta revolta?
Vinte anos após seu lançamento, o filme sul-coreano Oldboy, dirigido por Park Chan-Wook (A Criada e Decisão de Partir) e baseado no mangá de Garon Tsuchiya e Nobuaki Minegishi, retorna aos cinemas em versão restaurada e remasterizada. Sempre comentamos que, para chegar ao status de clássico, uma obra precisa passar pelo crivo do tempo. Isso não quer dizer que apenas os mais antigos possam receber essa alcunha, todavia, é preciso um “descanso”, talvez um olhar já mais distanciado para, então, estabelecer ou não sua grandeza. Nesse caso, Oldboy é um clássico do século XXI. Revisitar a obra-prima de Park é a reafirmação de sua capacidade como cineasta e a coesão estilística de sua filmografia.
Oldboy é a segunda parte de uma trilogia intitulada pelo próprio diretor como “Trilogia da Vingança”, precedida por Mr. Vingança (2002) e seguida por Lady Vingança (2005). Ambos filmes tem seu mote, obviamente, no sentimento de vingança, estabelecendo a violência exagerada como recurso narrativo. Mas, o que as torna obras especiais é a forma como Park estrutura a trajetória de seus personagens, sendo que nenhum movimento é meramente vingativo e sanguinário, pois partem de impulsos e reflexões muito mais complexas. É difícil ao espectador julgar aquelas figuras movidas pela raiva e pela culpa e que cometem atrocidades, da mesma forma que Oh Dae-su querer descobrir quem o prendeu por tanto tempo para se vingar é compreensível.
Por mais que seja comum ouvir que filmes com reviravoltas surpreendentes perdem sua força quando revistos, Oldboy comprova a futilidade dessa afirmação, evidenciando ainda mais os detalhes do trabalho primoroso de seu diretor. Depois de tanto tempo sem vê-lo e sabendo seu final, pudemos ir atrás de significados que tornam a experiência muito mais profunda e que escreveremos aqui sem nenhum cuidado com spoilers.
Nos primeiros segundos de projeção, Oh Dae-su nos é apresentado de forma ambígua. São como dois personagens: um, em flashfoward, que está segurando a gravata de um suicida à beira da cobertura de um prédio; outro que está bêbado em uma delegacia. Um já absorvido pelo desejo de vingança; outro um inofensivo beberrão. Fica clara a natureza dual do personagem, e que há alguma coisa além do que virá a acontecer. Por trás do homem alcoolizado que causou alguma confusão e acabou sendo autuado pela polícia está um pai de família que, no dia do aniversário de sua filha, se entregou à bebida. Oh Dae-su é um fracassado, não foi capaz de ir à festa da filha para lhe dar seu presente, um par de asas angelicais. Naquela noite chuvosa, No Joo-hwan (Ji Dae-han), seu amigo de longa data, é quem vai tirá-lo da cadeia.
Toda aquela movimentação é uma encenação. Há, com certeza, alguma coisa oculta naquele evento. No Joo-hwan afirma que Oh Dae-su “geralmente é um cara legal” enquanto pede desculpa aos policiais. Na verdade, a situação havia sido arquitetada para o sequestro de Dae-su, que, em um momento de distração de seu amigo em uma cabine telefônica, desaparece no meio da rua. A próxima vez que Joo-hwan veria Dae-su seria quinze anos depois daquela noite. Ao espectador fica a indignação do personagem principal que agora se torna narrador de sua história. Park nos aproxima dele para nos dar a incerteza de quem também está querendo descobrir o que aquele sujeito teria feito para causar a sede de vingança em seu oponente desconhecido.
Preso no que parece ser um quarto de hotel com portas de aço, Dae-su começa a sofrer seu castigo. Diferente da cena anterior, em que seu estado de embriaguez era refletido no movimento frenético de câmera, agora Park dá ares de seriedade ao filme, apresentando seus já conhecidos enquadramentos milimetricamente pensados e com movimentos firmes. O tempo pesa desde os créditos iniciais. O tic-tac do relógio, a monotonia do ambiente, a contagem dos dias; passamos da indignação radical e violenta à “aceitação” de Oh Dae-su. Não há o que fazer e a esperança de ser libertado é quase nula. Sua rotina agora é assistir TV, comer sempre o mesmo bolinho que lhe servem enquanto aguarda um gás sonífero sair pela tubulação.
Park Chan-Wook insere alguns símbolos que ganharão importância no decorrer do filme. Por exemplo, a existência recorrente de televisores constrói uma analogia genial sobre a própria forma como o filme é feito pelo diretor. A vida de Oh Dae-su se resume a assistir TV no tempo em que está encarcerado. É por meio dela que ele desperta seu desejo de vingança e começa a planejar como fugir daquele lugar, quando assiste no noticiário que sua esposa foi assassinada e ele seria o principal suspeito. É pela TV que “treina” movimentos de luta e sexo. Depois Dae-su descobre que também era observado por uma tela enquanto estava preso. No desenrolar da trama e no esclarecimento do plot twist principal, também podemos notar a semelhança com um jeito peculiar que os programas de TV funcionam, principalmente se considerarmos os chamados “pinga-sangue” da grade brasileira.
Foram anos colocando em prática seu plano de fuga abrindo um buraco na parede, até que, ao invés de se libertar, Oh Dae-su é libertado. Inexplicavelmente nosso personagem é deixado no topo de um prédio dentro de uma mala com seus diários. Retornamos para a cena em que ele segura um suicida pela gravata. De imediato, Dae-su precisa contar sua história àquela pessoa que estava prestes a se jogar e falar o quanto está sedento por vingança, buscando sua justificativa. A única coisa que o movimenta agora é a vontade de descobrir as motivações de sua prisão. E, ainda, porque foi solto exatamente naquele momento. Sua missão é ir atrás de sua própria história, revirar seus pecados que ficaram durante os últimos anos tomando-lhe os pensamentos solitários.
Park Chan-Wook já apresenta a assinatura que veríamos em filmes posteriores. A minúcia da mise-en-scène, que notaríamos no auge em A Criada (2016), já aparece em Oldboy. O cineasta organiza as cores como signos de seus personagens. Enquanto o verde é para Oh Dae-su, a cor púrpura representa a vingança. Após ser libertado, quando desperta e sai da mala, Dae-su está sobre um gramado verde. Então, percebe que, na verdade, está no topo de um prédio. Quando observa as construções ao seu redor, ele está envolto pela cor da vingança.
Solto, uma das primeiras coisas que Oh Dae-su quer fazer é comer. Não simplesmente comer, mas, faminto de vingança, quer devorar algo vivo. Eis a emblemática cena do polvo. Méritos infinitos ao ator Choi Min-sik que come o animal vivo sem nenhum efeito especial. É quando conhece Mido (Kang Hye-jeong), a simpática e jovem cozinheira do restaurante que, não por acaso, representa uma familiaridade a Dae-su (ele já havia visto a moça em um programa de TV sobre chefs de cozinha). Novamente há uma orquestração misteriosa por trás da cena que faz com que os dois se aproximem. Enquanto come o polvo que mexe os tentáculos dentro de sua boca, Dae-su sofre um desmaio súbito. Mido o leva até sua casa e passa, então, a cuidar daquele estranho homem. Ela tinha todos os motivos possíveis para não o fazer, mas, reiterando, há uma manipulação por parte do diretor que ainda não nos é evidente, mas o espectador está sendo “enganado”, é possível sentir isso.
Mido tem a cor vermelha do amor, do sexo, mas, também, do que viria a se tornar a violência. Com sua ajuda, Dae-su passa a investigar sua vida em busca de respostas. No meio desse processo há uma das cenas de ação mais marcantes do cinema recente: Oh Dae-su consegue chegar até o local de seu cárcere e precisa lutar com dezenas de homens empunhando apenas um martelo. Com maestria, Park Chan-Wook mescla os momentos dramáticos com cenas de luta estonteantes. Por mais que o protagonista vá ganhando ares de herói, enquanto vai obtendo êxito em suas árduas tarefas pela vingança, é visível que há uma ligação não casual dos fatos. O jogo de cores que o cineasta submete seus personagens vai misturando suas situações, ora dando traços esverdeados para Mido, ou, então, tons violeta para Oh Dae-su.
Todos esses fatores contribuem para um dos maiores plot twist da história do Cinema. Não se trata de uma virada repentina onde o mocinho se transforma em vilão, como nas novelas, mas uma inversão na forma de julgar que o espectador estava habituado. No ato final, a vingança de Oh Dae-su se torna quase insignificante quando a trama real se revela. O passado do protagonista no seu último dia na escola é a chave das revelações. Seu pecado foi ter sido o voyeur de uma situação que não deveria ter testemunhas.
Voltamos à referência televisiva que Park Chan-Wook insere em diversos momentos do filme. O espectador é, por natureza, um voyeur. Em Oldboy estamos observando o “erro” da observação de Dae-su, que, ao ver o incesto entre irmãos, corre espalhar notícias falsas sobre o casal. Seu inimigo é revelado plenamente: Lee Woo-jin (Yoo Ji-tae), jovem colega de escola que envelheceu com o peso de seu pecado (ter desejado a própria irmã). Oh Dae-su, sendo espectador, criou a narrativa e resolveu contá-la aos outros. Para ele, Woo-jin havia engravidado a irmã, que, por sua vez, ganhou a fama de jovem promíscua. Tudo isso levaria Lee Soo-ah (Yoon Jin-seo) ao suicídio e seu irmão à solidão. É como se Lee Woo-jin tivesse passado todos esses anos prisioneiro de si mesmo, convivendo com seus pecados enquanto reunia forças para se vingar. Temos, então, a vingança maior. A cor púrpura não era apenas o sentimento vingativo que Oh Dae-su nutria, mas a cor de Lee Woo-jin que o envolvia na trama desde o início.
Ver também é interpretar; há uma demanda moral, uma responsabilidade. Oh Dae-su criou a fofoca que descambou em seu próprio calvário. Talvez estivesse ele influenciado por seu mundo, pela violência ao seu redor, pela falta de dignidade e compreensão. “Oh Dae-su fala demais”, diria Lee Woo-jin. É claro que a TV e os programas que se tornaram famosos dos anos 90 para cá, os que chamamos de “pinga-sangue” aqui no Brasil, a violência televisiva, exercem influência sobre a população, sobre nosso modo de julgar. O que Park faz, além dos “jogos de vingança” dos próprios personagens em cena, é brincar com essa perspectiva do nosso lado, o espectador. Temos o nosso julgamento orquestrado de um canto para outro pelas mãos do diretor.
Por fim, desvendada a trama de vingança de Woo-jin contra Dae-su, sobrepondo a ideia de revanche inicial, temos mais um deleite cinematográfico. Quando o protagonista finalmente chega à casa de seu inimigo, o que seria seu ápice, transforma-se em sua ruína. É Oh Dae-su quem rasteja pedindo perdão depois de ser forçado a lembrar de sua culpa. Essa é a sequência mais destrutiva do filme, onde a ação ganha um novo significado. O desespero de Dae-su ao descobrir o que fizera é uma luta inútil. Park Chan-Wook retira o som para que o caos se potencialize através do grafismo violento de suas imagens. Na jogada final de Lee Woo-jin o roxo e o verde se misturam, afinal há culpa para todos. Os dois são movidos pelo ódio e pela dor.
Assistir Oldboy nessa versão remasterizada é um prazer que todos deveriam ter. Mas, de uma forma ou de outra, Oldboy, filme sul-coreano de Park Chan-Wook, deve ser visto e revisto pela eternidade, afinal, é um clássico.
Sua reestreia no Brasil aconteceu no dia 14 de setembro nas principais salas de cinema do país. O filme foi visto pelo Coletivo Crítico graças à cabine de imprensa disponibilizada pela Pandora Filmes em parceria com a Sinny Assessoria.
Assista ao trailer aqui.