Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você

Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você

A genialidade musical de Elis Regina e Tom Jobim é incontestável. Não há, em lugar algum, quem conteste ou coloque em dúvida o talento ímpar de ambos. Ela, dona de timbres e tons únicos, que transitavam do doce ao agressivo na mesma medida e qualidade, de uma intensidade interpretativa que elevava qualquer música a outro patamar. Ele, cocriador da bossa nova, fundador de um ritmo musical que levou o Brasil ao mundo e nos fez perceber o quanto o português brasileiro é fluído quando cantado. É algo que jamais se repetirá. É um privilégio nosso que esses dois músicos tenham se reunido para criar o disco Elis & Tom, de 1974. Clássicos como Águas de Março, Corcovado e Por Toda Minha Vida compõem a obra, apenas para exemplificar.

O documentário Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você, dirigido por Roberto de Oliveira e exibido no Festival de Cannes, traz imagens inéditas dos bastidores da gravação do referido disco. Guardadas por quase 50 anos, somos inseridos numa pequena parcela do processo criativo de produção da obra. O filme é construído por essas imagens de arquivo e entrevistas dos músicos e produtores participantes à época.

O longa é um documentário absolutamente convencional e quase desperdiça o precioso material que tem. Cria uma narrativa um tanto sensacionalista ao redor dos conflitos entre Elis e Tom que teriam dificultado a produção do disco a ponto de quase acarretar a desistência de Elis. Sai do lugar seguro e nostálgico que é a imersão do espectador na emoção das imagens, para colocá-las em segundo plano, priorizando as supostas discussões entre os artistas que parecem nunca realmente ocorrer.

A princípio, Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você posiciona os músicos individualmente, rememorando suas carreiras até o ano de 1974. Antonio Carlos Jobim, o gênio, aquele que cantou com Frank Sinatra, meticuloso compositor de sucesso mundial. Elis Regina, cantora intensa e inigualável, imparável, de sucesso internacional, que faleceu muito jovem em decorrência de uma tragédia.  

O maior e imperdoável pecado do documentário foi tratar de forma notoriamente desigual os dois gênios que procura homenagear. Enquanto o perfeccionismo e a chatice de Tom elevam o artista ao status de deus, Elis é retratada como emocionalmente desequilibrada, musicalmente imatura, sem controle. É exaustivo que essa estrutura narrativa machista ainda seja insistentemente replicada, pior, numa obra que busca, aparentemente, homenagear a genialidade e a pessoa que foi Elis Regina.

Parece até que todo o arco de Elis é construído para que posteriormente se fale de sua morte, reduzindo a artista à tragédia. Uma atmosfera dramática sonda cada apresentação da artista que nos é mostrada. Elis & Tom entrevista pessoas que perigosamente afirmam que a cantora teria escolhido ceifar com sua própria vida para não viver a decadência de sua carreira. Importante que se recorde que até hoje não há qualquer certeza sobre as circunstâncias que a vitimaram, e menos ainda, sobre a hipótese de suicídio. É extremamente indelicado e desrespeitoso que Roberto de Oliveira tenha mantido tal fala deliberadamente em seu filme. A polêmica vazia.

O Cinema permite o direcionamento narrativo de qualquer obra, seja ela documental ou não. Cada um dos planos e cada cena do filme é uma escolha do diretor. Portanto, o diretor é livre para manter e excluir cenas como bem entender, em nome da unidade de sua obra. Numa determinada entrevista, quando se fala sobre o sucesso internacional do disco, a pessoa entrevistada diz que a obra ficou famosa “No Japão, na África, nos Estados Unidos”. Cita mais alguns países. Trata a África não como continente, mas como um país único. A escolha deliberada foi pela manutenção de tal inaceitável fala.

Discordâncias e discussões nos parecem ser parte natural do processo criativo de qualquer obra artística. Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você parece depender de uma polêmica que sequer existiu. Se existiu, o longa não consegue imprimir credibilidade ao ocorrido. A predominância da narrativa sensacionalista falou mais alto que as belíssimas imagens que o filme possibilita acessar.  Elis Regina parece ter sido mais uma vítima da crueldade de homens que insistem em diminuir mulheres e reduzi-las a tragédias mesmo após suas passagens. Um potencial que ficou na praia.

Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você estreia nos cinemas em 21 de setembro e é distribuído pela O2 Play Filmes!

Nota

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  • Natália Bocanera

    Na escassez de tempo, entre advogar e dedicar-se à sua dezena de felinos, escolheu o cinema como ponto de equilíbrio e formação individual do seu "eu", em permanente descoberta.

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