Marinheiro das Montanhas | 2021

Marinheiro das Montanhas | 2021

A ausência paterna é, infelizmente, assunto popular no Brasil. Isso acontece graças à estrutura social em que vivemos, onde o homem se vê livre da criação dos filhos, designada à mulher. Não só aqui, essa história permeia a cultura ocidental desde a antiguidade. Quando Freud lança seu olhar sobre a mitologia grega e a relaciona com a formação de nosso inconsciente, dá uma nova significação ao papel do pai na família. Analisar as mazelas causadas por tal negligência se torna fundamental na existência saudável do filho. Em Marinheiro das Montanhas, o cineasta brasileiro Karim Aïnouz mergulha no mar desconhecido e revolto de sua psique para estancar as feridas abertas pela ausência de seu pai.

Marinheiro das Montanhas é uma espécie de road movie intimista, onde o protagonista, o próprio Aïnouz, faz uma jornada em busca da parte apagada de sua história. Aos 54 anos ele resolve ir até a Argélia, terra natal de seu pai, carregando um equipamento de filmagem. O modo como escolhe fazer essa viagem é o mais doloroso, o mais demorado, uma espécie de solidão voluntária em alto-mar. O que também nos remete ao título e à bela analogia feita pelo diretor logo que o filme começa. Era comum aos marinheiros sofrerem de “calentura”, uma febre que levava o indivíduo a querer se jogar no oceano e se entregar ao desconhecido. É assim que Aïnouz é consumido por essa vontade tardia em sua vida. Visitar a Argélia é um ato de coragem que representa sua mais profunda análise do inconsciente.

A obra é como seu diário de viagem. Karim Aïnouz escreve com sua câmera, narra com sua voz as imagens que registra na memória. O crítico literário Maurice Blanchot faz uma leitura interessante do processo de criação artística, e que não cabe apenas à literatura, mas também, até certo ponto, ao Cinema. Escreve ele que a Arte tem uma relação intrínseca com a solidão, é a exigência que a Obra faz ao artista. No caso estudado por Blanchot, é como se o escritor precisasse colocar em palavras suas angústias para se refugiar delas. Mesmo sem compreender suas dores, o artista autêntico se vê obrigado a se jogar no mar infinito que é a Arte, um espaço sempre aberto e nunca apreendido em sua totalidade.

O diário não é essencialmente confissão, relato na primeira pessoa. É um Memorial. De que é que o escritor deve recordar-se? De si mesmo, daquele que ele é quando não escreve, quando vive sua vida cotidiana, quando é um ser vivente e verdadeiro, não agonizante e sem verdade. Mas o meio de que se serve para recordar-se a si mesmo é, fato estranho, o próprio elemento do esquecimento: escrever.

Maurice Blanchot, O Espaço Literário, pág. 19.

Portanto, escrever, que para Aïnouz é filmar, é um momento perigoso, arriscado. O cineasta se lança, como se estivesse febril, no mundo das possibilidades infinitas, da “reescrita” de si. É por isso que Marinheiro das Montanhas é um filme corajoso e intenso, porque consegue demandar do espectador a experiência da  intimidade do autor, que converge, em algum sentido, com a nossa. Por mais que não se tenha o pai ausente e a mãe falecida, como no caso do diretor, sentimos a sua “calentura”. Estar diante do desconhecido e o medo da descoberta são sentimentos universais.

Todo o trajeto e, consequentemente, o enredo de seu filme, gira em torno da figura da mãe, Iracema, que, depois de seu falecimento, se tornou um personagem para o filho. Ela é o endereçamento de seu diário. Ele a chama de “minha amiga imaginária”, em certo momento do filme. Chega a imaginar como seriam as coisas se ela estivesse junto, diferente da relação que tem com o pai, que se convida para a viagem, mas é recusado por Karim.

Há, também, um olhar compreensível e doce por parte do cineasta, que, quando finalmente chega às montanhas da Cabília, terra natal de seu pai, e conhece seus parentes, tenta inverter sua história para o avesso, imaginando se seu pai tivesse cumprido a promessa de buscar a mãe e o filho para viverem juntos. Mas, na realidade, nunca chegou a ver seus pais juntos, a não ser nas fotos antigas. Como teria sido? Que dor é essa que Iracema sentiu durante tantos anos?

A frustração de uma história incompleta está a todo instante nas falas do narrador. O interessante é que Aïnouz se dá voz apenas com função narrativa e, raras exceções, não como personagem presente nas imagens. Quase nunca se filma ou interage com as outras pessoas, mesmo que estas estejam se referindo a ele. Sua mudez diante dos parentes perdidos, por exemplo, nos faz compreender o quanto aquela situação deve ter sido desconfortável, penosa. É um sacrifício necessário para o diretor e nós entendemos, até mesmo quando vai embora sem se despedir daqueles que o receberam.

Marinheiro das Montanhas consegue ter força, porque é um filme sincero. Filmagens de viagem, quase turísticas, que poderiam desinteressar o espectador, na verdade ganham uma ressignificação pelas mãos de Karim Aïnouz. O filme é um diário contemplativo, aberto para que todos possam ler e sentir a “presença da ausência” e nos ensina que, por mais dolorosa que seja, é preciso se entregar à “calentura”.

Marinheiro das Montanhas foi assistido pelo Coletivo Crítico graças à cabine de imprensa da Gullane em parceria com Sinny Assessoria.

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