Jogos Mortais X | 2023

Jogos Mortais X | 2023

A humanização de John Kramer

Chegou o momento que muitos fãs de terror esperavam (ou não), mas eu certamente sim e todos que acompanham até aqui a franquia de filmes Jogos Mortais, conhecida por sua exploração sádica baseada em jogos violentos e sanguinários, engenhosamente arquitetados por um dos maiores antagonistas do universo do horror moderno. Personagem que ganha destaque logo de cara em Jogos Mortais X, John Kramer tem um primeiro ato completamente dedicado a ele, fugindo da abordagem que sempre inferiu um certo mistério ao nome. Ao longo de quase vinte anos desde o sucesso de lançamento do primeiro filme da série dirigido por James Wan, e dois anos depois do fracassado “Espiral: O Legado de Jogos Mortais”, Kramer recebe um protagonismo que o humaniza, explica e expõe um pouco mais das fragilidades desse maléfico gênio vingativo que sente prazer em torturar suas vítimas.

A vingança ou o sentido de justiça sempre foram fatores motivadores para as ações de Jigsaw, assim como sua controversa noção de isenção de culpa, ao criar jogos onde os participantes têm o direito de escolha: viver ou morrer. O assassino, que considera nobre sua missão de dar a chance de “redenção” às suas vítimas, é dessa vez confrontado e ironizado no filme, enganado e feito de bobo. É interessante como Jogos Mortais X, em certa medida, caçoa de seus próprios cacoetes. O primeiro ato, onde acompanhamos Kramer em busca de uma salvação para seu câncer terminal no cérebro, soa como um deslocamento narrativo eficaz que nos faz esquecer que estamos assistindo ao décimo filme de uma sequência baseada no torture porn, que nunca se preocupou em ser podado nesse sentido, gozando de princípios extremamente moralistas e cruéis. Ao mesmo tempo, nos faz aguardar pelo momento em que essa chave irá virar e “que os jogos começem”.

Jogos Mortais X não traz de volta apenas a figura icônica de Tobin Bell, que aparece em oito dos dez filmes, mesmo depois de sua morte em “Jogos Mortais 3” (2006), através de flashbacks, mas resgata também a personagem Amanda Young, sua fiel escudeira interpretada por Shawnee Smith, que sobrevive ao jogo de Jigsaw no filme de 2005 e passa a colaborar com ele. O longa de 2023, dirigido por Kevin Greutert, se passa entre o primeiro e segundo da franquia, o que deixa uma discrepância visual em relação ao envelhecimento dos atores, principalmente o de Smith, pois nesse vai e vem temporal, o tempo da vida real não para. Jogos Mortais X conta com Synnove Macody Lund em seu núcleo principal, ela é jornalista, crítica de cinema, modelo e atriz norueguesa, e interpreta a Dra. Pederson, médica farsante que vai despertar a ira de Jigsaw. Sua atuação é pouco convincente, assim como a do elenco de apoio, mas é a personagem chave para a virada no comportamento de John Kramer.

Os jogos começam, enfim, por meados do segundo ato e seguem em um ritmo frenético, que consegue manter a originalidade e criatividade macabra das invenções criadas por Kramer e Amanda. A fórmula do filme volta a ressoar como nos primeiros da franquia, com diversos plot twists que em breve serão relembrados em forma de flashbacks e explicados ao espectador detalhe por detalhe. Um artifício que pode desagradar, mas que é familiar aos que acompanham a saga desde o começo. 

Paulette Hernandez as Valentina in Saw X. Photo Credit: Alexandro Bolaños Escamilla

Mutilações, desmembramentos, decapitações, vísceras sendo rasgadas a sangue frio, um prato cheio de sangue começa a tomar forma cada vez mais nítida e mais intensa em Jogos Mortais X. Por vezes um pouco entediante, há certa repetição de métodos em alguns jogos, e a reafirmação constante da importância da martirização de cada vítima, mas que são contrabalançados com decisões inusitadas e desesperadas tomadas por alguns personagens. Como por exemplo, quando a Dra. Pederson precisa de uma corda para alçar um carrinho com seu celular que fora deixado no centro da sala onde os participantes estão aprisionados, em um momento de distração de Amanda e Kramer, ela rasga a barriga da colega morta ao seu lado e retira seu intestino com as mãos e afirma: “agora temos uma corda”. 

Kevin Greutert consegue recriar a atmosfera de Jigsaw dos primeiros (e melhores) filmes da franquia, fazendo com que esse seja um longa de resgate dos personagens mais interessantes de Jogos Mortais: John Kramer, com suas motivações sádicas de efeito moral e Amanda, resiliente confrontando seu velho e assombroso problema com vício em drogas, vendo Jigsaw como seu “salvador”. O filme trata os dois personagens com um respeito um pouco inquietante, que humaniza e respalda as ações dos torturadores e, em paralelo, zomba da própria série como um todo. Esse problema moral do filme, que tenta muitas vezes nos fazer torcer por esses antagonistas, merece ser questionado. Jogos Mortais é uma franquia que abriu portas para esse gênero de horror explícito americano mais pop, como “O Albergue”, dirigido por Eli Roth em 2005, que ganhou sequências em 2007 e 2011, e filmes como o recente sucesso do palhaço Terrifier de 2016, com sequência em 2022. Jogos Mortais X me parece que não é o filme que finda essa franquia, atente para a cena pós créditos e boa sessão!

Nota:

Author

  • Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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