Zé | 2023 | 17ª Cine BH

Zé | 2023 | 17ª Cine BH

por Francisco Vidal

O caminho escolhido por Zé (2023), o mais recente longa-metragem de Rafael Conde, para retratar a trajetória do líder estudantil e revolucionário marxista José Carlos Novaes, um jovem militante que foi perseguido e brutalmente assassinado por militares durante a época da ditadura, é de uma marcha fúnebre. Cada plano e composição desta obra possui uma unidade estética de liminaridade, de iluminação escurecida e quase monocromática, um mundo sem cor e sem energia, como se toda sua elaboração visual tivesse sido feita para lembrar constantemente ao espectador de que estamos diante de uma figura que logo desaparecerá, de um mundo doméstico e social que não tem futuro e culminará com a morte precoce de seu protagonista. 

retrata pontos importantes da vida de José (Caio Horowicz); seu relacionamento com Bete (Eduarda Fernandes), a clandestinidade que o casal teve que viver, por sofrer pelas ações de agentes da ditadura brasileira, sua relação familiar com seu pai e mãe, sua vida social e companheirismo com outros jovens revolucionários. A sua militância não era apenas como estudante, mas também como professor, cuja práxis era centrada em um ideal de emancipação de classes, de fugir da consciência burguesa dominante e criar uma utopia de mundo que destruísse a opressão generalizada que o Brasil sofria durante a época da ditadura. 

Entretanto, se Zé nos traz um jovem com um espírito que prezava a revolução, a inovação de formas de perceber e se relacionar com o mundo, porque o sentimento geral que o filme provoca é de uma anemia? Porque retratar a vida dessa figura dentro de um filtro que tira todas as cores, todo o tesão de viver, como se a jornada de seu protagonista fosse definida apenas pela mórbida sensação de impotência e fracasso? Onde está o espírito de Zé em seu próprio filme? Onde está a sensação alegre de pensar um universo novo, uma forma dinâmica de imaginar relações humanas? Em conclusão: retrata sua figura central dentro de um esquema que o define lugubremente como uma fantasmagoria, com um estilo visual morto-vivo, inerte, em que cada momento parece prestes a se desvanecer perante nossos olhos. 

A obra tenta realizar duas operações simultâneas de abordagem dramática: uma em que se utiliza da dramaturgia que abraça o teatral, com uma composição de mise-en-scène em grande parte com planos fixos, centralizados, no qual os personagens parecem se comunicar de forma idêntica à uma peça filmada. Conde também utiliza  filmagens de relatos diretos filmados em close-up das cartas regidas por Zé a sua mãe e pai, ditadas por Caio Horowicz enquanto olha para a câmera. Essa abordagem teatral cria um efeito de distanciamento, de uma sensação de artificialidade que é interrompida ocasionalmente por momentos mais sensuais, como o primeiro encontro de Zé com Bete, e pequenos momentos de intimidade do casal em seu lar. 

Mas, um novo questionamento surge: qual a necessidade de criar um distanciamento visual e dramatúrgico se o efeito principal que isso causa é uma neutralização da potência dramática de sua trajetória? O filme parece constantemente estar em guerra consigo mesmo, entre tentar ser uma obra narrativa com circularidade tradicional (a batalha de Zé e Bete em melhorarem suas condições de vida, a fuga constante do protagonista da opressão da época, o relacionamento que ele tem com seus pais e amigos revolucionários) ao mesmo tempo que abraça sem reservas uma estética que se caracteriza pela diluição e neutralização completa de qualquer força que esse drama poderia trazer. É uma obra em perpétua contradição consigo mesmo. É estruturada como uma tragédia, mas sua solução cinematográfica não consegue levar o espectador a entender a força de vida, a potência revolucionária que movia cada instante da existência de seu protagonista. 

A teatralidade, com uma câmera fixa que captura cada detalhe em conjunto dos cenários e de suas pessoas e objetos, não é um problema, e há momentos em que a escolha sóbria da frontalidade dessa abordagem consegue captar contradições e conflitos de uma forma sutil dentro do quadro (por exemplo, o detalhe da empregada doméstica que aparece na extremidade dos planos da casa dos pais de Zé, em um encontro breve entre eles, mostrando um descompasso da classe que sua família pertence e o caminho que ele escolheu). Entretanto, essa frontalidade acaba resultando em escolhas estéticas geradoras de perplexidades: o filme apresenta tiques estilísticos que não agregam ou apresentam qualquer justificativa de ser, sendo elementos que se mostram totalmente irrelevantes ou estranhos para o filme, ou ao menos para a proposta dramatúrgica que ele pretende realizar. Um exemplo disso é a escolha de mostrar, em cenas de conjunto, personagens  já apresentados, de costas viradas para a câmera, um tipo de obscurecimento visual vazio que não tem nenhum tipo de justificativa simbólica e estética, nem mesmo dentro das próprias cenas. 

O visual do filme parece ter sido pensado de maneira arbitrária, um mergulho em uma zona monocromática cinzenta em preto e branco, como se a única marca registrada de Zé fosse uma vida amaldiçoada, sem amor, em um sonambulismo estético que retira qualquer raio de alegria e desejo que ele dedicava a sua causa e sua esposa e filhos. Essa arbitrariedade de escolhas estéticas se estende até a montagem, que termina abruptamente cenas durante o diálogo em cortes brutos, e se isso poderia fornecer algum tipo de urgência, ele é aniquilado pela repetição contínua em que essa transição é utilizada.  

persegue um ideal artístico que é diretamente responsável por torná-lo mais genérico possível. Escolhe uma forma que é totalmente independente e separado de suas ambições dramáticas, um distanciamento que diferente do distanciamento bretchiano, não fornece um espaço de reflexão histórica, pelo contrário, apenas cria uma inércia uniforme que esvazia e esteriliza seu conteúdo. O problema principal de é essa discrepância abismal entre a vida e a figura do protagonista e o estilo incongruente de sua versão cinematográfica. 

Há no longa uma dificuldade enorme de dramatizar seus conflitos de forma potente. Os diálogos são em grande parte expositivos, com poucos momentos de respiro, em que conseguimos verdadeiramente sentir e ouvir os sentimentos dos personagens, sem a necessidade de um didatismo histórico artificial Isso aproxima o filme mais de um documentário encenado genérico que poderia ser encontrado em canais de história televisivos. 

Os momentos de que mais conseguem atingir algum grau de força são exatamente os momentos em que o filme desvia de sua unidade opressiva, em que realiza bifurcações dentro de sua trajetória. Como as cenas menores do primeiro encontro entre Zé e Bete, e o breve encontro do protagonista no final com uma velha amiga revolucionária, são nesses brevíssimos momentos em que o filme deixa de se distanciar do seu protagonista e permite a entrada dentro de sua vida interior.

Zé (2023), com seu mundo fantasmagórico cinzento, sua teatralidade e fixidez esterilizante, sua falta de nos fazer entender a paixão que esse jovem teve em sua luta revolucionária, acaba definindo seu protagonista apenas pela tragédia, pela elegia e apenas por ser uma imagem que sabemos que irá desvanecer. Acaba ironicamente esvaziando o protagonista de si mesmo, tirando sua chama em favorecimento de um distanciamento que o faz ficar longe de Zé e de sua potência específica que ainda se mantém tão atual e relevante em um Brasil ainda carregado não de um fantasma, mas por uma força fascista que precisa ser combatida não com um sentimento de impotência, mas com a coragem de traçar caminhos revolucionários de diferença, marcas características da personalidade deste jovem, que “infelizmente”, são pouco encontradas dentro de um filme sobre ele. 

FICÇÃO | COR | DIGITAL | 124 MIN | 2023 | MG
Direção: Rafael Conde

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