Assassinos da Lua das Flores | 2023

Assassinos da Lua das Flores | 2023

“Estou aqui para lhes dizer que acuso o homem branco. Acuso-o de ser o maior assassino da Terra. Acuso-o de ser o maior sequestrador da Terra. Não há lugar no mundo onde o homem branco possa ir e dizer que ele criou paz e harmonia. Onde quer que ele tenha ido, criou a desordem. Onde quer que ele tenha ido, ele criou a destruição. Por isso o acuso de ser o maior sequestrador da Terra. Acuso-o de ser o maior assassino da Terra. Acuso-o de ser o maior ladrão e escravizador da Terra. Ele não pode negar as acusações. Somos a prova viva dessas acusações. Não somos americanos, somos vítimas da América. Não tivemos a escolha de vir. Ele não nos disse ‘Homem e mulher negros, venham me ajudar a construir a América’. Ele disse: ‘Negro, entre no barco. Vou te levar para lá para me ajudar a construir a América.’ Ter nascido aqui não nos torna americanos. Você é um dos 22 milhões de negros vítimas da América. Você e eu nunca vimos a democracia. Não vimos democracia nos campos de algodão da Georgia, não há democracia lá. Não vimos democracia em Harlem, Brooklin, Detroit, Chicago. Não, nós nunca vimos democracia. Tudo que vimos é hipocrisia. Não vimos qualquer Sonho Americano. Só experimentamos o pesadelo americano.”

Malcolm X

A pertinência do discurso que abre Malcolm X, de Spike Lee, em Assassinos da Lua das Flores, é traduzir com precisão muito do que se sente com o mais novo filme de Martin Scorsese. A violência estratégica e a crueldade do homem branco que se impõe e subjuga povos, sejam eles indígenas ou africanos, mediante uma política de morte e genocídio programado, evidenciam o perfeitamente cabível título de maior assassino e sequestador da face da Terra. Não há como negar a acusação.

Em meados de 1920, a nação indígena Osage tornou-se riquíssima após descobrir uma enorme reserva de petróleo em seu território, Oklahoma. A transação, claro, era com o homem branco, que comprava o ouro negro dos Osage e a eles servia. Motoristas e empregados domésticos brancos trabalhavam para esse rico povo, que era detentor dos carros mais novos e caros, fazia uso de roupas luxuosas e joias, e mantinham ricos os bancos do local. E é, de fato, delicioso assistir a essa histórica inversão dos papéis.

Misteriosa e oportunamente, esses detentores da riqueza começaram a morrer em condições nunca investigadas ou explicadas. A prosperidade e morte dos Osage deu origem ao livro Assassinos da Lua das Flores, de David Grann, adaptado por Scorsese, que resolveu nos contar essa história moldando-a num espetáculo que jamais cai na espetacularização, sob o ponto de vista branco que jamais se inocenta de nada, pelo contrário, se reconhece como criminoso que é.

O recorte de Scorsese é a conexão entre a família de Mollie (Lily Gladstone) e Ernest Buckhart (Leonardo DiCaprio). Mollie, sua mãe e suas três irmãs compõem uma família abastada, dona de títulos e terras de petróleo. Ernest é um ex-soldado pouco letrado e manipulável, sobrinho de William Hale (Robert De Niro), fazendeiro de grande poder e influência que fala a língua dos Osage e se coloca como apoiador e amigo do povo indígena. Uma a uma, Mollie e suas irmãs começam a se casar com homens brancos. Ernest se torna motorista de Mollie e é quem vai se casar com essa específica herdeira da riqueza Osage.

De igual modo, uma a uma, as mulheres que compõem a família de Mollie começam a padecer de algum tipo de doença. “Doença debilitante” é o que a maioria sofre, sem maiores explicações. Mollie é diabética. O pacto de assassinato do homem branco já nos é evidenciado através do personagem de De Niro: os Osage são um povo de saúde fraca, pouco resistente às doenças, que não passa dos 50 anos, e que, hora ou outra, padece. Ou seja, de qualquer forma, a vida dos Osage não será longa.

A quantidade de indígenas mortos e os ares conspiratórios chamou a atenção, a nível federal, de J. Edgar Hoover, iniciando-se uma investigação que viria a ser um dos primeiros casos do FBI.

A medicina como “presente do homem branco” e como entorpecimento dos povos originários; o genocídio estruturado disfarçado de amizade; o branco como maior criminoso do mundo. Scorsese, magistral, anestesia o espectador ao revelar o pacto assassínio da branquitude e sua lógica de cooperação para a eliminação de um povo, de uma identidade, persistente após a colonização, tal como se deu em todos os lugares por onde passou, cada qual a seu modo. A estratégia, aqui, ganha contornos de Tulsa: o homem branco não permite a prosperidade nem das pessoas negras, nem dos povos originários.

A personagem de Mollie, aqui, é a representação do golpe sofrido pelo povo Osage. Ela é totalmente consciente de que sua condição abastada é chamariz para a proposta de casamento que recebe de Ernest. Silenciosa, de poucas palavras mas muito expressiva, ela sabe. É entorpecida, simbólica e literalmente, pelo marido. É o seu silêncio que construirá a potência dessa personagem, que dá vida às cenas mais impressionantes do longa. Ela nunca precisa de muitas palavras. Contorna e obtém a confissão que necessita. Lily Gladstone é de uma força espantosa.

Scorsese jamais se omite da posição de contador de histórias. Trabalha muitos elementos em Assassinos da Lua das Flores que nos rememoram seu lugar – como os carinhosos letreiros dos filmes mudos no pulsar vibrante inicial do filme. Estrutura o acontecimento verídico, a tragédia da continuidade colonizadora, para colocar novamente o homem branco, causador da destruição, como beneficiado de sua própria torpeza, contador da história, que se utiliza de seus feitos horríveis para entreter a si mesmo. A ironia é patente.

As belíssimas composições que ele atribui aos costumes dos verdadeiros donos das terras estadunidenses, num tom ensolarado e meditativo, são contrastes bem-vindos ante a frieza e formalidade dos assassinatos. Não há peso dramático, há praticidade, há um tom de serviço cumprido. Enquanto há calor e afeto nos Osage,  não há nada além de brutalidade no homem branco e suas relações.

Assassinos da Lua das Flores é gigante não só por ser esse western invertido, onde o vilão histórico incontestável está em seu devido lugar. É gigante em sua fluidez, em sua agilidade, em sua inteligência narrativa, na graduação dos acontecimentos e na distribuição de seus espaços. É enorme porque permite respiros e pausas nas horas certas, porque é estratégico na escolha de cada membro do elenco. É Cinema por quem mais entende dele atualmente.

Nota

Author

  • Natália Bocanera

    Na escassez de tempo, entre advogar e dedicar-se à sua dezena de felinos, escolheu o cinema como ponto de equilíbrio e formação individual do seu "eu", em permanente descoberta.

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