Leme do Destino | 2023

Leme do Destino | 2023

Um diálogo intenso e demorado entre duas mulheres numa mesa de bar. Um simples e cuidadoso quadro em plano médio, ao fundo uma parede de tijolinhos amarelos. É assim que Julio Bressane nos introduz a Leme do Destino, diante de uma conversa entre pessoas que são objetos de desejo uma da outra. Um desejo evidente que é especificado pela forma feminina e, mais do que isso, pela falta de interesse na forma masculina.

O longa mostra, em seu primeiro ato, cenas da praia do Leme no Rio de Janeiro, dando atenção especial à pedra que leva o mesmo nome e a seu formato, que lembra o leme de um barco. Estamos acostumados a ver cenas ensolaradas e um cenário veranil, mas são em tempestuosos dias cinzas, com nuvens carregadas e ventanias que balançam as folhas das árvores da orla carioca, que se passam as imagens que abrem e entremeiam o longa de Bressane.

Desde o começo, seu interesse por um cinema mais livre narrativamente ganha corpo, abraçando outra vez o diálogo e cenários inspirados no teatro e nas artes plásticas, como em um de seus últimos filmes, Capitu e O Capítulo (2021). Em Leme do Destino, Bressane nos rememora linguisticamente e através do jogo corporal de performances que ora lembram o palco teatral, ora a dança contemporânea, entre as atrizes Josie Antello e Simone Spoladore, seu filme de 2003, Filme de Amor. Josie e Simone são as forças motoras que pulsam o longa, em belíssimas interpretações conjuntas, sem pudor, através de uma jornada de desejo e de caminhos que estão à deriva. 

O leme é a peça que imprime direção às embarcações e assim como o mar, incerto e turbulento, Bressane retrata em imagens balançantes que lembram seu movimento e que lembram também o uso que Jean-Luc Godard fazia da câmera. Assim segue a vida das personagens em Leme do Destino. Sem rumo, mas com uma direção que pode mudar a qualquer momento. São duas mulheres construindo uma relação intensa, que, por mais forte que pareça, a narrativa deixa uma clara a sensação de que nada é permanente. 

Bressane traz, mesclado a diálogos filosóficos sobre a vida e suas perspectivas, espaços visuais e silenciosos, como um pedaço de papel sendo consumido lentamente pelo fogo em um ambiente de baixa iluminação. Essa foi uma das cenas mais bonitas e reflexivas que assisti nos últimos tempos. Fruto de uma maturidade cinematográfica que o diretor esbanja em ótima forma, aos 77 anos e com mais de 40 filmes feitos.

Josie e Simone parecem estar perdidamente apaixonadas, mas logo surge um rapaz e tudo se modifica. Provando que o destino está sempre em aberto. O vento muda e as ondas viram a direção do caminho das duas. Há um recorte lúdico que brinca com objetos cênicos que se movem sozinhos, teatral e quase infantil, em um momento de delírio e êxtase que pertence somente a elas. Sem pressa de querer dizer a que veio, sem intenção alguma de ser didático, Leme do Destino faz das relações humanas um ensaio primoroso, poético e sensual.

Nota:

Filme visto através de nossa cobertura do 25º Festival do Rio, acompanhe tudo aqui
Filme visto através de nossa cobertura da 47ª Mostra de Cinema de São Paulo, acompanhe tudo aqui

Author

  • Jornalista carioca, editora e crítica de cinema. Tem foco de interesse e pesquisa em cinema de gênero e feito por mulheres.

    View all posts

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *