Afire | 2023

Afire | 2023

Christian Petzold traz em Afire, um desafiador jogo de manejo social que expõe sentimentos conflitantes entre um grupo de colegas (prestes a se conhecer melhor), por meio de um dos seus personagens masculinos mais complexos. Através de desconfortáveis situações, unidas à uma mise-en-scène nouvellevagueana, o  diretor alemão nos faz conhecer cada personagem ao ouvirmos suas conversas de perto e observarmos suas expressões, que são ambientadas em uma locação ensolarada, cheia de verde e ao lado da praia. 

Somos convidados a passar alguns dias juntos à Leon (Thomas Schubert) e Felix (Langston Uibel), na casa de seu tio, emprestada aos jovens amigos. O primeiro é um escritor que precisa finalizar seu livro e aguarda ansioso pela visita de seu editor; o segundo é um estudante de Artes e está tentando terminar seu portfólio em um projeto fotográfico. Ao chegarem à casa, logo percebem que outra pessoa está ocupando o mesmo espaço que eles. Louças espalhadas pela cozinha, resto de lasanha sobre a mesa, uma cama bagunçada e roupas femininas jogadas no chão,  denunciam que Nadja (Paula Beer), logo aparecerá por ali. 

Nadja é dona de uma personalidade encantadora e receptiva, ocupa a casa, mais do que com sua presença física, com seu jeito espontâneo de levar a vida. Nas duas primeiras noites, a moça incomoda especificamente Leon, que divide o quarto ao lado com Felix. Separados por uma fina parede, o rapaz tem seu sono roubado pelos ruídos sexuais do quarto vizinho. Leon é o protagonista de Afire, onde Petzold, depois de tantos filmes em que são majoritariamente estrelados por mulheres, como em Yella (2007), Bárbara (2012), Phoenix (2014) e Undine (2020), volta a ressoar como em Em Trânsito (2018), onde explora as nuances de um protagonismo masculino. No filme de 2018, temos um falso escritor que também se envolve com uma personagem feminina interpretada por Paula Beer. 

Leon está sempre absorto em suas próprias frustrações, lidando com todos a sua volta gratuitamente de forma amarga. Parece que o personagem faz isso espontaneamente, o que traz uma identificação desconfortante com suas atitudes extremamente anti-sociais. Ele tem pensamentos mesquinhos e julga os demais superficialmente, como, por exemplo, quando após receber uma crítica negativa de Nadja sobre o manuscrito de seu possível novo livro, diz coisas como “ela não deve ter entendido nada, essa vendedora de sorvete estúpida”, quando na verdade Nadja tem formação em Letras e profundo conhecimento literário, fato que Leon só descobre em outro momento. A forma egoísta como ele lida com todos e sua personalidade evitativa, faz com que o personagem tire sempre conclusões precipitadas sobre seus colegas. 

Mais do que sua rispidez, chama atenção o profundo incômodo que ele manifesta em relação ao que observa nas interações entre as outras pessoas. Leon precisa ser visto com importância, com a importância que ele acha que tem, mas para isso precisa enxergar os demais como inferiores a ele, como quando hostiliza o namorado de Felix, caçoando de seu trabalho como salva-vidas. Um exemplo é quando todos estão reunidos para um almoço com a presença do editor de Leon (que chegou à casa para ler seu manuscrito), em uma agradável mesa no quintal. Nadja vira o centro das atenções ao comentar o nome de um autor que é um dos favoritos do editor, que a faz recitar um poema. Todos à mesa ficam encantados com ela, mas o olhar de Leon é desconcertante, tudo que ilumina o outro e não a ele, parece o matar internamente. É uma incapacidade de sentir alegria pelo próximo, visto que só seus dilemas importam. 

Esses momentos são gravados em cenas que soam como uma homenagem aos filmes do francês Eric Rohmer, às vezes na praia, em passeios ensolarados, mergulhos e clima de flerte na areia, ou nas reuniões em casa, na valorização do diálogo descontraído, do compartilhamento genuíno de experiências e da vontade de se conhecerem melhor de peito aberto. Esse clima contrabalanceia o peso de uma trama simples proposta por Petzold, mas que em momento algum deixa de nos alertar sobre o risco dos incêndios que estão ocorrendo nas florestas da região, devido ao calor e às condições climáticas desfavoráveis. O paraíso veranil está sempre permeado pela atenção ao iminente perigo do fogo.

O ponto de tensão que o protagonista traz ao filme, somados ao risco do incêndio que circunda a narrativa, criam uma atmosfera muito interessante e dissonante em Afire, que é contraposta pela doçura e altruísmo de Nadja e os demais que convivem com ele naqueles dias de verão. Leon é um personagem complexo que recusa passeios incríveis, experiências únicas e interações genuínas em favor de sua personalidade narcísica e extremamente amargurada.  O mais interessante é conseguir pensar que certos julgamentos e atitudes que ele toma, indiscutivelmente vistas com repulsa pelo espectador, também seriam facilmente tomadas por eles, pois são manifestações completamente humanas, de um homem que sabe que vai sofrer as consequências de seu modo de lidar com a vida, e sofre.

Nota

Filme visto através de nossa cobertura da 47ª Mostra de Cinema de São Paulo, acompanhe tudo aqui

Author

  • Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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