Juventude (Primavera) | 2023

Juventude (Primavera) | 2023

O mundo cada vez mais globalizado e a sociedade de consumo fazem com que sempre queiramos pagar mais barato em itens, sejam eles essenciais ou não. Não só o consumidor final, mas os donos de grandes lojas de departamentos e revendedores usam dessa lógica de mercado. Com isso, por trás das prateleiras iluminadas e vitrines decoradas, existe um universo desumano, sujo e apertado, sufocado e se sacrificando para sobreviver e produzir esses bens para grandes empresas. O diretor chinês Wang Bing faz em Juventude (Primavera) um retrato documental sufocante sobre milhares de jovens de entre 16 e 25 anos que passam temporadas trabalhando incessantemente abrigados em alojamentos de fábricas de roupas em uma cidade na China.

Começamos acompanhando registros que mesclam a câmera parada, bem localizada nos cantos apertados dos cômodos das fábricas, amontoadas com tecidos e muitas máquinas de costura; e a câmera na mão que transmite a atmosfera caótica e acelerada de todo o processo de trabalho desses jovens. Juventude (Primavera) tem mais de três horas de duração. Parece longo e é, mas se pararmos para pensar que o material bruto de Bing é baseado em cinco anos de filmagens, passando por inúmeras oficinas de costura pela cidade chinesa e registrando recortes de micro realidades de cada uma delas, ele tem uma duração que lhe cabe muito bem. 

Somos absorvidos por aqueles pequenos cômodos com paredes sujas, linhas, tesouras e o barulho incessante das máquinas funcionando a todo vapor. Rapidez e agilidade são as palavras de ordem. Quantas peças são humanamente possíveis serem feitas, na maior velocidade possível? Esse é o raciocínio que os empregados das fábricas têm constantemente, pois dependem da produção individual para serem remunerados. Ganham por peça e cada uma tem o valor médio de 10 à 15 centavos, dependendo da complexidade do processo. A grande maioria deles não faz muita ideia de quanto vai receber no dia do pagamento, é um cálculo contínuo de balanço entre tempo de produção versus quantidade produzida. 

Entre uma sessão e outra, nos corredores do cinema, eu ouvi a conversa entre dois rapazes que estavam debatendo sobre Juventude (Primavera), um deles disse para o outro: “será que eles aceleraram as imagens? pois pareciam aceleradas certas vezes, não é possível que eles trabalhem mesmo naquela velocidade”. Não, as imagens são reais e não foram alteradas, e sim, é possível trabalhar em tal velocidade, humanos em ritmo insano, em ritmo desumano. 

O contraste gritante do documentário está no teor das interações pessoais. Apesar desse cruel ofício, que os faz perder sua juventude sentados em bancos de madeira desconfortáveis, uns colados nos outros o dia todo, há um clima brincalhão e descontraído, afinal, são adolescentes. Eles cantam, ouvem música, se conhecem melhor, criam laços, viram uma comunidade que se dá bem e convive unida entre paqueras, amizades e pequenas desavenças. Muitos se envolvem romanticamente, flertam, sempre com bom humor dentro da situação cruel a que já estão tão profundamente inseridos, que não perdem mais tempo com reflexões tristes.

Através das conversas entre os jovens, percebemos nuances da cultura local, a pressão que as mulheres sofrem para se casar cedo com um homem que ganhe bem e possa a sustentar. A crueldade como uma menina que engravida é tratada pelo patrão, que quer que ela termine a demanda da semana, mesmo precisando tirar um tempo para ir com a mãe a outra cidade cuidar de talvez “se livrar do bebê”, pois já está com dois meses e não pode esperar mais muito tempo. Há também um grupo que se reúne a fim de lutar por um preço mais justo por peça, visto que a oficina na qual trabalham paga abaixo das demais. É uma dificuldade enorme o diálogo entre patrão e empregado, há rispidez e humilhação, redução de importância das questões básicas levantadas pelos jovens. 

Juventude (Primavera) é um documentário necessário, que dá voz a uma sociedade que vive em uma bolha pouco vista e ouvida, escondida pelas camadas cruéis do fast fashion e da indústria desenfreada dos bens de consumo. Os jovens funcionários se confundem com as máquinas que manejam, quase vistos como tal, mas Bing infere um olhar bastante humano a realidade de cada um deles. Abrir os olhos para entender o porquê de uma peça de roupa chegar com um preço tão baixo nas prateleiras, certamente é muito mais importante do que comprá-las.

Nota

Filme visto através de nossa cobertura da 47ª Mostra de Cinema de São Paulo, acompanhe tudo aqui

Author

  • Mari Dertoni

    Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

    View all posts

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *