Na Água | 2023

Na Água | 2023

O sul coreano Hong Sang-Soo certamente é um dos mais prolíficos diretores de cinema da atualidade. O ritmo com que filma talvez possa ser facilitado pela “simplicidade” das técnicas que utiliza em seu trabalho: nada complexo tecnicamente; pelo contrário, pode-se dizer que utiliza métodos até bastante simples, no que se destaca o reiterado uso do zoom em sua filmografia, ferramenta que está disponível até mesmo nos mais rudimentares celulares da atualidade.

Em Na Água, Sang-Soo chama atenção por utilizar recursos que, mais uma vez, não se alcançam por meio de maior dificuldade no uso de suas câmeras: o coreano “apenas” tira o foco da esmagadora maioria das imagens que compõem o filme. E destaco, desde já, o uso das aspas em algumas palavras destes parágrafos porque é extremamente difícil utilizar bem o que se põe como simples ou banal.

Aqui, vale a menção a um acontecimento ao mesmo tempo engraçado e pitoresco ocorrido na primeira exibição da obra na 47ª Mostra de São Paulo: quando o filme ainda estava em seu início, um grito irrompeu o silêncio no Cine Sato: “o filme está sem foco!” Os segundos posteriores foram preenchidos de risadas e um buchicho geral que indicava o constrangimento que assolou o local. 

Percebe-se, desde o início da obra, que Na Água não vai trazer, sobretudo narrativamente, algo muito diferente das obras mais recentes de Sang-Soo: temos novamente um enredo que perpassa por um personagem diretor de cinema e alguns atores e atrizes; temos cenas em que os personagens refletem sobre suas vidas; temos novamente os personagens bebendo soju. Contudo, a opção pelo desfoco, ao fazer com que tudo fique mais abstrato e menos claro ao espectador, faz com que este oriente sua atenção para outros elementos, engendrando, efetivamente, algo de bastante interessante nesta experiência que é assistir ao filme.

Mais uma vez, também percebe-se uma forte transferência das inquietações pessoais do diretor coreano para o personagem Seoung-Mo (interpretado por Shi Seok-Ho), ainda que se queira, de alguma forma, tornar essa “identificação” menos precisa, principalmente porque traz-se que Seoung-Mo decidiu dirigir filmes após ter se dedicado à atuação.

A narrativa gira, essencialmente, em torno de três pessoas: o diretor Seoug-mo (interpretado por Shin Seok-ho); o cinegrafista Sang-guk (interpretado por Ha Seong-guk); e a atriz Nam Hee (interpretada por Kim Seung-yun). Juntos, vão filmar um curta-metragem em uma área litorânea na Coreia do Sul. 

Os dias (que deveriam ser de gravação) passam sem que o cineasta traga informações mais precisas acerca do que irão filmar ou até mesmo sobre o que será o filme. O orçamento curto e esta falta de transparência por parte de Seoung-mo fazem com que a angústia paire, ainda que disfarçada, naquele set.

Enquanto as filmagens não se iniciam, as conversas singelas que preenchem o ócio da equipe trazem o que de potente possui o filme. Discussões que passam pelo desconforto em estar se consumindo alimentos não coreanos (como a pizza), até temas que têm o potencial de atingirem uma grande parte de cineastas (“consagrados” ou não), como, por exemplo, a razão pela qual se faz um filme.

Nesta parte de Na Água, especificamente, podemos compreender melhor vários dilemas enfrentados pelo personagem e, porque não, pelo próprio Sang-Soo

Neste sentido, mostra-se muito evidente a alusão à dificuldade de “ganhar dinheiro” com o cinema, sobretudo a partir da fala de Seoung-mo de que os seus filmes são feitos “pela honra”, já que não possuem qualquer “aptidão” a serem sucessos de bilheteria (o que casa completamente com a própria produção de Sang-Soo). Também é abordada a falta de dinheiro como sendo um importante limitador na produção cinematográfica, ideia trazida  através de uma destas conversas singelas, em que Seong-guk é tido como “alguém que tem mais talento do que pensa ter”, mas que esta sua habilidade é completamente desperdiçada por não ter condições financeiras para filmar e, assim, dar azo a todo seu potencial artístico.

Estes diálogos indicam que a falta de foco que acompanha o filme é uma inventiva referência a uma ausência de liderança que Seoung-mo demonstra ao não conseguir conduzir as gravações de forma com que sua equipe esteja minimamente confortável: enquanto o tempo passa sem que as gravações iniciem (ou ao menos se saiba informações mínimas em relação ao que será gravado). Em uma cena bem marcante, sentem frio enquanto Seoung-mo divaga, notadamente não se importando com tudo que ocorre ao seu redor. 

Não à toa, Na Água  passa a ter foco exatamente na cena em que a atriz e o assistente de direção, por conta própria,  passam a ter a iniciativa de procurar e comprar alimentos que lhes agradem. Assim, Sang-Soo parece mandar uma mensagem a todos os artistas e profissionais com que trabalhou: tudo soa como um autêntico mea culpa

E é assim, nesta desorganização, nesta languidez, neste ócio que consome boa parte do tempo em que a equipe permanece junta naquele belo litoral, que o grande norte se coloca, de forma natural, à frente de Seoug-mo: de certa forma, sua tristeza e letargia o atraem para o trabalho de uma senhora que, periodicamente, dedica seu tempo a limpar a sujeira que àqueles que frequentam a praia ali deixam e realiza esta atividade de forma circunspecta, o que parece animar o diretor ao ponto de fazer que aquela limpeza das rochas se torne o verdadeiro mote de sua obra cinematográfica, o que denota, mais uma vez, a ideia de trazer Seoung-mo sendo o alter ego de Sang-Soo e seus interesses pelas cenas do cotidiano.Ao final do projeto, quando o alívio parece se confundir com a tristeza vinda do enfrentamento de tantas questões pessoais envolvendo a vida, o cinema, as relações interpessoais, o desfoco faz com que a ida de Seoung-mo ao mar, na praia em que gravou sua obra, traduza-se em momento de rara beleza, fazendo com que esta cena esteja destinada a permanecer um bom tempo viva na memória dos espectadores, sobretudo os fãs da filmografia de Sang-Soo.

Nota

Filme visto através de nossa cobertura da 47ª Mostra de Cinema de São Paulo, acompanhe tudo aqui

Author

  • Eduardo Gouveia

    O representante do Pará no Coletivo Crítico que, entre o doutorado em Direito e os jogos do Paysandu, não dispensa uma pipoca para comer, uma Coca Cola gelada para beber e um bom filme para ver.

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