Paraíso Em Chamas | 2023

Paraíso Em Chamas | 2023

O comportamento humano depende muito do habitat  e das condições gerais de onde o cada indivíduo é criado ou vive a maior parte de seus dias. Os seres vivos, animais pensantes ou não, necessitam de auxílio de um provedor para que possam crescer em condições consideradas saudáveis: a mãe de uma ninhada de pássaros que traz alimento na boca dos filhotes incapacitados de voar, a proteção que um cão que acaba de vir ao mundo sente ao poder se alimentar de sua progenitora. Quando essa relação naturalmente linear se rompe, é preciso partir para um instinto de caça prematuro, para que certas espécies consigam, com muito esforço, sobreviver. Se um bebê humano for lançado ao mundo sem nenhum amparo, ele somente será capaz de chorar o mais alto que puder, usando o único mecanismo que possui para chamar atenção e talvez obter ajuda.  

Qualquer família que sofra com a ausência de seu provedor, fará com que os integrantes mais vulneráveis aprendam a se virar sozinhos, ou dependam do auxílio de terceiros. Em Paraíso em Chamas, segundo longa-metragem da diretora sueca Mika Gustafson, vencedora da Mostra Horizonte no Festival de Veneza, somos trazidos à realidade hostil de três irmãs que aprendem “na marra”, a lidar com a primeira situação citada. Laura é a irmã mais velha (16 anos), e junto de Mira (12 anos) e Steffi (7 anos), tenta segurar as pontas dentro da grande casa onde vivem na Suécia. A casa é bastante caótica, nada diferente do que se poderia esperar de meninas nessas faixas etárias que desconhecem uma rotina de disciplina e cuidado. As irmãs vivem de forma anárquica e independente, criando seus próprios meios de sobrevivência. 

Por breves momentos pode parecer libertador não ter hora para dormir, nem para escovar os dentes, cobranças por faxina ou estudos, mas essa sensação passa rápido quando percebemos o peso que Laura carrega nas costas, como a mais velha e responsável da família, para fazer as coisas minimamente darem certo para elas. Constantemente a alimentação das irmãs baseia-se em comida congelada, por vezes fora da validade, conseguidas através de doações ou por pequenos furtos ao supermercado, assim como suas roupas, sempre maiores do que seus tamanhos. Gustafson filma essas situações com um olhar direcionado para a força e perspicácia que elas têm para enfrentar essas dificuldades juntas, ao invés de um olhar pessimista e derrotista diante de uma situação tão cruel.

Assim como os animais de rua, que quando famintos precisam de certa selvageria para conseguirem preservar suas vidas e a de seu bando, as meninas, por vezes, adotam comportamentos selvagens também. Seus rostos mostram uma postura de enfrentamento com o mundo à sua volta, os problemas batem à porta e elas estão prontas para rosnar para eles. Não por acaso, há no começo de Paraíso em Chamas, e no decorrer dele também, um cão de rua que às vezes as observa e às vezes é observado por elas. Esse paralelo é feito e bem construído, nessa relação das três meninas contra o mundo. Nesse processo elas desenvolvem suas estratégias, como algumas farsas combinadas para enganar os funcionários do supermercado e Laura desenvolve suas técnicas para entrar em casas desocupadas sem ser percebida. 

Não é só essa luta diária que Laura, Mira e Steffi enfrentam. No meio de toda a necessidade básica, como alimento e higiene, elas ainda enfrentam descobertas relacionadas ao amadurecimento feminino e passam por isso sem nenhum auxílio ou acolhimento que alguém com mais experiência que elas; como a primeira menstruação de Mira, celebrada em um lindo ritual de passagem com as irmãs e suas amigas de bairro, ou sobre as descobertas acerca da sexualidade de Laura, que se interessa por uma mulher mais velha. A união das meninas as fortalece, mesmo que Laura e Mira por vezes entrem em conflito, como as duas irmãs mais maduras e por conseguirem entender melhor o drama que vivem, elas mantêm um laço afetivo inseparável que as engrandece. 

Paraíso em Chamas é um filme que traz muita potência nas atuações e na força com que as personagens enfrentam o abandono parental sofrido. Steffi, com apenas 7 anos, é corajosa, sofre bullying por seu corpo fora do padrão, mas faz piada com as meninas mais velhas, simulando algumas vezes situações de um universo que ela ainda irá conhecer de fato e ainda não tem idade para viver. A mãe das meninas sequer aparece, nem sabemos o nome dela. Depois de uma ligação do conselho tutelar, há algumas tentativas desesperadas das meninas por pedidos de ajuda, para tentar evitar que algo de pior aconteça. Mas no fim, e desde o começo, as meninas entendem que, na verdade, só podem contar com elas mesmas.

Nota

Filme visto através de nossa cobertura da 47ª Mostra de Cinema de São Paulo, acompanhe tudo aqui

Author

  • Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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