Agreste | 2023

Agreste | 2023

O longa-metragem Agreste, dirigido por Sérgio Roizenblit, baseia-se na peça homônima do autor recifense Newton Moreno, que já ocupou palcos de teatros nacionais e internacionais por mais de quinze anos. 

O filme de Roizenblit é iniciado com uma força digna de nota, em que o diretor se utiliza da ausência de diálogos (o primeiro só ocorre para além do minuto treze) para situar os acontecimentos primeiros. Esta falta de diálogos, contudo, não significa silêncio: os sons da natureza e a trilha sonora são utilizados de forma bastante arguta.

Quando a narrativa passa a se desenvolver de forma, digamos, mais ortodoxa, o filme perde força, insistindo em repetições que não agregam elementos narrativos significativos para o bom desenvolvimento da trama. 

Etevaldo e Maria, casal de protagonistas, em uma paixão à primeira vista, sem terem ao menos conversado e sabido o nome um do outro, fogem de onde residem para viverem um amor absolutamente arrebatador. 

Após a fuga exasperada, Maria busca saber mais sobre o passado e os anseios do seu companheiro, no que sempre encontra intransponível resistência. Tudo que envolve Etevaldo é cercado de bastante mistério e obscuridade, no que Agreste sugere, ora implícita, ora explicitamente, que o personagem masculino é homossexual, algo que deve ser escondido por todos que ali vivem. 

Para além do casal protagonista, o roteiro introduz dois outros personagens: Valda, uma senhora camponesa que cede uma casa para que Etevaldo e Maria possam morar e é muito afetuosa com o casal; e seu sobrinho, um policial que ao visitar a tia, acaba por sentir-se atraído por Maria. 

Nesta dinâmica, há uma grande intenção de apontar o quão intolerantes (e até mesmo primitivas) são aquelas pessoas,  o que é trazido no roteiro sobretudo a partir do tratamento dispensado por Valda com sua filha gestante: sua gravidez fez com que a mãe a expulsasse de casa e a colocasse à própria sorte, o que é feito sob as mais variadas fundamentações, no que o filme visa trazer à lume sempre o poder das de cunho religioso; bem como a intolerância de Valda ao observar e discordar piamente da liberdade de Maria ao cuidar da casa e não ser plenamente submissa ao seu companheiro, dizendo a Etevaldo coisas como: “faça seu papel de homem”. 

A narrativa passa a ficar bastante cansativa e até mesmo enfadonha, dando voltas em torno das mesmas situações, quase que como “gastando tempo” para que logo pudesse dirigir-se ao seu grande acontecimento final: após uma briga que tem como razão principal o amor de Maria, Etevaldo é esfaqueado e morre. Quando dos preparativos para o seu velório, verifica-se, ao despi-lo, que seu corpo, biologicamente considerado, é do gênero feminino, o que gera uma grande confusão, posto que Etevaldo adotava uma performance masculina. Ou seja, depois de sua morte, descobre-se que Etevaldo era um homem trans

Aqui, impossível não mencionar o protesto que houve, antes da primeira exibição do filme na 47ª Mostra de São Paulo, em que um coletivo de artistas transexuais protestava contra a escolha de um ator homem cis para interpretar um homem trans, afirmando que o filme praticava o transfake e não dava espaço para que artistas trans pudessem trabalhar. Tal protesto parece ter pegado vários membros da produção do filme de surpresa e, de certa forma, também o público que desconhecia o desfecho da peça que deu origem ao filme (registra-se, aqui, que isso fica em segundo plano, o efetivamente  importante é o teor das reivindicações realizadas).

Após a exibição do longa-metragem, o diretor Sérgio Roizenblit foi convidado a responder algumas perguntas do público presente na sessão e comentou sobre o protesto ocorrido. Contudo, me parece que , “a emenda ficou pior que o soneto”: tentou diminuir os brados do grupo de artistas transexuais, mencionando que o filme tinha como personagem principal Maria e não Etevaldo, bem como, por mais de uma vez, vangloriou-se de que os atores do longa-metragem todos eram nordestinos e vindo de Estados diferentes da federação, como se isso, por si só, fosse suficiente para que a produção do filme não tivesse que preocupar-se com questões outras, como por exemplo, escalar um artista trans para interpretar um personagem trans

Nos minutos finais da obra, a intolerância explode na tela a partir de uma sequência de enormes violências cometidas a Maria e Etevaldo, (mesmo que este já tivesse falecido): Maria é estuprada, o corpo sem vida de Etevaldo é vilipendiado e eles são hostilizados, tendo sua casa queimada, tudo em um contexto de absoluta selvageria trazida/incentivada por uma população local que em nenhum momento anterior aparece de forma vivaz na narrativa e que é retratada como uma massa homogênea de selvagens intolerantes, reforçando (e aqui não discuto dolo da direção) um estigma direcionado ao sertanejo/nordestino pra lá de reproduzido. Esta sucessão de atos brutais, tratando a população indistintamente, sem indicar ao menos a possibilidade de um foco de oposição à barbárie que ali poderia surgir, parece, inadequadamente, mais uma vez conferir mais força a este estigma. 

O diretor Sérgio Roizenblit é nascido em São Paulo.

Agreste não traz nada novo para a discussão dos temas muito complexos que trata, tornando-se um filme que já nasce cheirando a mofo e usa do corpo trans para simplesmente chocar o espectador  através de um plot twist pernicioso sob vários aspectos e não para fazer o público do país que mais mata travestis e transexuais no mundo, verdadeiramente refletir a respeito.

Nota

Filme visto através de nossa cobertura da 47ª Mostra de Cinema de São Paulo, acompanhe tudo aqui

Author

  • O representante do Pará no Coletivo Crítico que, entre o doutorado em Direito e os jogos do Paysandu, não dispensa uma pipoca para comer, uma Coca Cola gelada para beber e um bom filme para ver.

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