Samuel e a Luz | 2023

Samuel e a Luz | 2023

A globalização é um fenômeno paradoxal. Fruto do processo de colonização, o almejado “progresso” chega a um custo. Há mudanças na forma de vida, em como as pessoas se conectam umas com as outras e com a natureza. Samuel e a Luz, grande vencedor do Prêmio do Júri de Melhor Documentário na 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo , nos leva até a praia de Ponta Negra, em Paraty, para acompanharmos a chegada da eletricidade e seus efeitos na comunidade de pescadores, partindo da família de Samuel, um garoto de cinco anos, sua mãe, pai e seus cinco irmãos.

O dilema entre a tradição e a modernidade é muito bem trabalhado pelo diretor Vinícius Girnys. São dois tons que se complementam nos revelando as transições daquele lugar e daquela família. A princípio, ainda sem luz elétrica, o vilarejo se movimenta em torno da pesca artesanal. A rotina do pai pescador, da mãe relegada aos afazeres da casa e das crianças que brincam na mata, é filmada sem pressa, em um ritmo contemplativo.

Aos poucos, o puxar das redes do mar se transforma no puxar dos fios elétricos que se conectam aos postes sendo instalados. Girnys faz sua narrativa de um modo que não é invasivo, mas gradual. O povoado parece querer se adaptar à nova realidade, tem sonhos quanto às facilidades que estão por vir. O pai de Samuel, ainda que relutante e de mau humor com a novidade, parece ir se entregando a ela. Ou não haveria outra opção?

Em um dos raros momentos de diálogo no filme, o pai conversa com outro pescador sobre a escassez dos peixes e como isso vem aumentando a cada dia. A vida urbana já estava chegando (ao menos seus efeitos). Por sua vez, a mãe parece se empolgar com a possibilidade de melhorar de vida e passar a trabalhar com o turismo que está “descobrindo” aquela praia. Pensa, inclusive, em abrir um bar, ideia contrariada pelo marido autoritário.

A facilidade que o cineasta tem em trabalhar com as imagens não é a mesma quando se dispõe aos diálogos. As conversas entre vizinhas, e até entre marido e mulher, são artificiais, parecem forçadas para dar luz aos conflitos internos das famílias que moram ali. São de um didatismo desnecessário que poderia ser melhor aproveitado pelas analogias imagéticas. Entretanto, isso não chega a comprometer a obra como um todo, compensando em belíssimas rimas visuais: os barcos dos pescadores que antes navegavam calmamente, agora trazem pessoas alvoroçadas por aproveitarem a praia; o pai de Samuel, que construía redes e caçava javali à noite, outrora é o garçom da lanchonete.

É pelo olhar da mãe que Samuel e a Luz se torna interessante. Tudo o que acontece à sua volta parece refletir no modo como sonha a vida de seus filhos. O que será do futuro de Samuel? Essa pergunta nunca é feita de forma explícita, mas há uma esperança que ele e seus irmãos vivam em outras condições que não reproduzam as opressões que ela viveu.

Gradualmente o ritmo do filme acelera com a abertura de comércios, bares, lanchonetes, turistas e bailes noturnos. O silêncio agora é rompido pelos gritos eufóricos de pessoas que passam a visitar o novo ponto turístico de Paraty. O carregamento de peixes dá lugar ao de geladeiras, móveis, ou, então, sacos de lixo que precisam ser levados até um barco maior para despejo. É apenas aqui que Samuel e a Luz ganha um tom invasivo, como se os colonos tomassem a praia.

O que antes era um espaço de contemplação do trabalho manual se tornou expropriação capitalista. Ponta Negra é agora um lugar de comércio, onde pessoas compram seus momentos curtos de lazer fugindo da exploração que sofrem no “mundo real”. O pequeno Samuel é envolvido nessa situação e, com o passar do tempo, planeja carregar malas de turistas para conseguir dinheiro e tomar um sacolé.

Samuel e a Luz é um filme que não tenta resolver seus problemas de forma simples, visto que são naturalmente complexos. Girnys percebe que as transformações do mundo globalizado são inevitáveis, ininterruptas, mas irracionais e exploratórias. A câmera flagra a frustração ano após ano no olhar da mãe, como se os sonhos fossem sendo enfraquecidos. Samuel irá viver num mundo que já não é o dela. Mas de que forma ele vai se relacionar com a vida? É um convite à reflexão do que estamos fazendo com os lugares que habitamos, de que forma estamos nos relacionando com a natureza.

Nota

Filme visto através de nossa cobertura da 47ª Mostra de Cinema de São Paulo, acompanhe tudo aqui

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