The Royal Hotel | 2023
The Royal Hotel, segundo longa da diretora Kitty Green, pode até ser bem-intencionado, mas não consegue ir muito além disso. Para discutir misoginia e a reprodução da violência contra a mulher, joga suas protagonistas, as amigas canadenses Hanna (Julia Garner) e Liv (Jessica Henwick), mochileiras em viagem na Austrália que ficam sem dinheiro e resolvem trabalhar para fazer alguma reserva, em meio a um deserto australiano, no hotel título, que fica isolado num campo de mineração, ambiente quase que totalmente masculino. Lá, elas são garçonetes no bar, sendo desde o início alertadas de que precisariam lidar com o comportamento desagradável dos homens do local.
A diretora cria um ambiente masculino de selvageria e caos para trabalhar o suspense, colocando as duas amigas que apenas querem se divertir em meio àquela toxicidade e insegurança, um lugar que parece que vai corrompê-las ou torná-las vítimas. O Royal Hotel é um local onde homens (brancos) bebem demais, são violentos (verbal ou fisicamente) demais e abertamente machistas.
A Austrália com muitos lugares isolados onde há um sério problema de alcoolismo é bem Wake in Fright, clássico filme australiano de 1971 dirigido por Ted Kotcheff, que também é situado em uma zona desértica afastada, com personagens sempre à beira do limite e imersos num ciclo que os leva do copo de cerveja ao caos. Mas as referências param por aí. The Royal Hotel não teria um grande problema se não usasse de uma suposta e incabível cegueira das amigas, especialmente de Liv, quanto à iminência de violência que elas o tempo todo enfrentam, aparentemente, sem perceber.
É interessante que essa conivência ao abuso, iminente ou praticado, trazida por Kitty Green, seja algo diariamente enfrentado por mulheres. Dificilmente haverá uma de nós que nunca tenha ouvido uma frase abusiva de mãos atadas, não nos restando nada além de olhar e sorrir, ou fingir incompreensão. Quando tudo é levado com uma suposta leveza de “brincadeira”, afrontar é muito desafiador para nós, ainda que o alto grau de violência seja por nós profundamente sentido. A diretora consegue criar uma atmosfera aterrorizante, de fato, com sucesso.
Entretanto, infelizmente, para alcançar a atmosfera de horror, faz Hanna e Liv optarem por situações de perigo em total contradição à preocupação manifestada pelas jovens. Faz as personagens femininas sofrerem abusos e insistirem em permanecer ali apenas para que sofram uma violência maior, para que alcancem o ápice da insegurança. Cria, ainda, um ambiente bestial que faz sugerir que todo lugar remoto do país seja manifestamente agressivo, o que é bastante preocupante. Nada é muito razoável e nada parece se encaixar, e o que soa como uma proposta promissora, se perde.
A experiência, no fim das contas, é penosa e bastante incômoda. The Royal Hotel se contenta em entregar um final com aparência feminista e afrontadora, funcionando como o limite de suportabilidade da violência, que tenta apenas compensar por todo o restante da obra. A inocência descabida e desconexa das amigas acaba por colocar, lamentavelmente, muitos panos quentes na misoginia.
Filme visto através de nossa cobertura da 47ª Mostra de Cinema de São Paulo, acompanhe tudo aqui