O Pequeno Corpo | 2021
Palavras são insuficientes para tentarmos explicar ou compreender as dores de uma mãe. Recentemente escrevemos sobre Dançando no Escuro, filme de Lars von Trier que trata sobre a maternidade, onde acompanhamos a luta de Selma Jezkova para cortar a hereditariedade problemática que relegava ao filho. A personagem abria mão de si em prol da existência saudável de seu primogênito; todo sofrimento que ela passou valeria a pena se ele pudesse crescer e ver o mundo. Aqui, em O Pequeno Corpo, de Laura Samani, vemos a jornada espiritual de uma mãe em luto, que também abdica de si, mas para salvar a alma da filha.
Os dois filmes são completamente diferentes e nos servem como comparação apenas na temática. Laura Samani é mulher e, certamente, nos dá uma perspectiva diferente de Trier, tentando construir sua obra em torno do misticismo que o conceito Mãe carrega. A diretora opta por não fazer elaborações sociais e políticas para contar sua história, inclusive nos dando poucas contextualizações, adotando um tom intimista mais interessado no rosto da protagonista refletindo seu martírio.
Quando Agata (Celeste Cescutti) nos é apresentada transparece o entusiasmo por estar prestes a dar à luz uma criança. Ela vive em uma comunidade de pescadores de uma ilha, no final do século XIX. As mulheres daquele povoado fazem um ritual de preparação à maternidade, entoando cânticos e levando Agata até o mar, onde deve colocar a mão que recebeu um corte dentro da água salgada. É uma fusão espiritual entre o sangue e a infinitude do oceano, algo que ganhará mais sentido em uma cena futura.
O momento de alegria dura muito pouco, já que o parto não é bem sucedido. A filha nasce morta, sem ao menos dar um suspiro. Na cultura religiosa daquele povo, quando isso acontece significa que a alma agora habitará o limbo. O pequeno corpo está vazio, enquanto o espírito que ali estaria ficará vagando eternamente na solidão e na miséria. É então que Agata parte em sua missão para poder batizar a criança, assim dando-lhe um nome, uma identidade que a tiraria do sofrimento. Mas o padre se nega. O martírio da mãe em busca da salvação da alma da filha começa.
Como Samani não dedica muito tempo para que o espectador possa se localizar, vamos logo para o trajeto de Agata até uma montanha onde sua filha ressuscitaria milagrosamente por um breve suspiro, podendo, assim, ser batizada. Por mais que haja aquele povoado e a religião que muito influenciam os acontecimentos no filme, quase nada se diz sobre isso.
Desde o primeiro momento a câmera evidencia que o objeto da narrativa é o sofrimento da personagem principal, a mãe. As pessoas em volta de Agata raramente são focadas, ou demoram muito para serem vistas pela lente. Os movimentos são sempre em torno da mãe, mostrando seu rosto desolado. Solitária, Agata carrega nas costas o pequeno corpo do natimorto.
Seu caminho é cortado pela misteriosa figura de Lynx (Ondina Quadri), personagem transmasculino que se dispõe a guiá-la até seu destino. O ambiente que era de sororidade no vilarejo, do lado de fora, é de hostilidade. A forma suspeita com que Lynx é revelado pela cineasta, assobiando e se espreitando pela mata, logo é confirmada por seu ato: ele leva Agata para ser vendida como ama de leite de uma família rica.
Esse é o momento em que o ritmo do filme tem uma leve mudança, adicionando alguma tensão. Mas, no geral, tudo segue a mesma toada: algo contemplativo e intimista. A forma de filmar os personagens segue a mesma, girando em torno do rosto de Agata e desfocando seu redor. O desenvolvimento e a reviravolta na relação de Agata e Lynx também não tem maior aprofundamento, soando como um artifício para dar sequência à trama. A jovem mãe acaba firmando uma amizade com aquele que a vendeu e a dupla parte rumo à montanha milagrosa.
O lirismo que Laura Samani implica na sua história rende alguns belos momentos como, por exemplo, quando Agata e Lynx estão em um labirinto cavernoso. Perguntada por Lynx sobre como era o mar, Agata descreve a magia e a ligação que tem com esse cenário. É um lapso do que talvez signifique a água para seu povoado. Entretanto, o que poderia levar o espectador a uma catarse onírica, à identificação com o sofrimento da personagem, não acontece.
É somente no ato final do filme que vemos a poesia com o mar. Ainda seguindo o mesmo ritmo, a trajetória para a salvação da alma da criança termina explorando novamente de forma rasa a mística da fertilidade e a relação de Agata com a água. É como se o apego da diretora ao realismo falasse mais alto e a obra nunca explorasse todo seu potencial metafórico. O Pequeno Corpo é importante quando fala do martírio da maternidade, mas não consegue se desenvolver plenamente em cima disso. A mulher que se leva ao flagelo, impulsionada pela religião, poderia carregar implicitamente a condição feminina na sociedade, mas recai no sentimentalismo excessivo. O filme dá poucas palavras à essas construções, optando por uma jornada espiritual que tem sua beleza, mas peca em consistência. É difícil colocar em texto o sofrimento de uma mãe, mas, ao menos, poderíamos senti-lo e imaginá-lo por meio da arte, o que, infelizmente, não é o caso.