Culpa e Desejo | 2023

Culpa e Desejo | 2023

Podemos dizer que o desejo é assunto presente no panteão dos dilemas humanos. Há muito tempo lidamos com o conflito interno de que nem tudo pode ser dito ou feito. O mais célebre dos pensadores sobre o tema, Freud, escreveu que somos seres ardentes, animais que passam a ser educados pela sociedade, reprimindo nossas vontades. Mas, uma hora ou outra, como um instinto, algo se liberta e o desejo se manifesta. Vem então o sentimento de culpa. Culpa e desejo são duas coisas inseparáveis e é sobre essa complexa relação que a cineasta francesa Catherine Breillat constrói seu filme.

Anne (Léa Drucker) é uma advogada bem sucedida de meia idade, casada com Pierre (Olivier Rabourdin), mãe de duas crianças, vivendo em uma bela casa no campo. Essa apresentação do contexto acontece de forma rápida, com uma montagem que a cada recorte avança dias ou semanas. Logo na primeira cena a protagonista aparece evidenciando seu sucesso, vencendo um caso em que defende uma vítima de estupro. Nesses momentos iniciais, Anne se mostra uma pessoa muito segura, íntegra, veste sempre cores neutras e vestidos fechados até o pescoço. Certamente uma pessoa que passa a confiança necessária para alguém que trabalha com a lei.

Pierre, o marido, em segundo plano, é mais velho que a esposa e parece exercer uma função de grande importância em uma empresa. Ao contrário de Anne, ele não é o reflexo do sucesso, enfrenta problemas familiares e de reconhecimento no trabalho. Seu filho de outra relação, o adolescente Theo (Samuel Kircher em seu primeiro papel no cinema), tem causado problemas e acabou preso por ter agredido seu professor de matemática. No entorno de Pierre o clima é de insegurança, ainda mais agora que vai precisar trazer o filho rebelde para morar com a família após a prisão. O jovem chega e traz consigo o ódio que alimentou durante anos e anos de abandono paterno. Anne e Pierre são vistos por Theo como estranhos.

A forma como Breillat cria a relação entre esse triângulo, Anne, Pierre e Theo, transita por uma linha tênue entre o poético e o clichê. Os trabalhos anteriores da diretora sempre foram carregados de poesia e mergulhavam nesse universo com muito êxito, como é o caso de Anatomia do Inferno (2004).  Neste filme as palavras e as imagens se uniam em prol de uma profunda análise do corpo feminino e da opressão masculina. No caso de Culpa e Desejo esse encaixe não é tão preciso. Há, por exemplo, uma cena em que o casal conversa em primeiro plano e Theo, ao fundo, se contorce em um misto de ciúme e raiva, quase como uma atuação shakespeariana.

A entrega de Léa Drucker à personagem e sua condução na jornada desejante são grandes méritos do filme. Sua segurança começa a ser abalada com a chegada do jovem enteado na casa, mas não como algo involuntário, pelo contrário, é a curiosidade de Anne com a juventude de Theo que a faz se aproximar do garoto, e é possível notar isso no rosto da atriz. Ela que se sentia atraída por coisas velhas, como seu carro mais antigo (além de um monólogo explicativo sobre isso durante o sexo com o marido), agora é fascinada pela rebeldia adolescente de Theo.

É a atração de Anne por Theo que faz a história entrar em declínio na segunda metade da obra. A primeira evidência é quando um caso que Anne defendia começa a dar errado. O desejo pelo jovem se transforma em sexo. A madrasta e o enteado nutrem a aventura de romper com a repressão dos desejos e se entregam um ao outro. Até mesmo o garoto que dizia não ter sentimentos acaba se apaixonando, criando um laço mais forte do que Anne por ele.

Quando não cai no exagero, Breillat nos entrega imagens poéticas que fazem rimas narrativas que fortalecem o filme e remetem à suas obras posteriores. O sexo com Theo é muito mais libertino e prazeroso do que com Pierre, evidente quando a diretora dedica uma longa tomada do rosto de Anne durante o orgasmo. A junção dos rostos de Theo e Anne quando se beijam jamais acontece com Pierre. A profundidade de sentimentos com o jovem rende belas imagens que expressam o desejo superando a culpa pelo ato.

A complexidade do triângulo amoroso em Culpa e Desejo não precisa ser reafirmada aqui. O filme indicado à Palma de Ouro em Cannes sabe trabalhar bem a evolução desses dois sentimentos e o conflito entre os personagens, muito disso por conta da atuação de Drecker. O jogo de atração e repulsa ganha os tons poéticos já conhecidos na filmografia de Breillat, deslizando em alguns momentos, mas não comprometendo a obra. Quando a disposição é plena à poesia tudo flui com muita naturalidade e beleza, entretanto, quando se torna ilustrativo e depende da força de atuação de Samuel Kircher o filme cai em clichês e perde sua potência.

Author

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *