Godzilla Minus One | 2023

Godzilla Minus One | 2023

Um drama humano, dentro de um Japão devastado sob a
sombra da Guerra e de um monstro-bomba

O monstro radioativo mais querido do cinema já ganhou diversas obras que contam, através de pontos de vista e escolhas estéticas diferentes, como é a sensação de passar pela  gigantesca devastação que é ter um encontro com Godzilla. Algumas produções estadunidenses foram feitas pelo caminho, como “Godzilla” (1998) de Roland Emmerich, que traz um design diferente ao corpo do monstro – deixando-o bem mais parecido com um réptil, e o recente “Godzilla vs. Kong” (2021), dirigido por Adam Wingard, que preserva a forma do lagarto-dinossauro mais clássica, porém seu apelo extremamente comercial resulta em uma trama fraca e  completamente esquecível. Godzilla Minus One, realizado por Takashi Yamazaki, prova que os japoneses estão muito à frente dos americanos em técnica e narrativa nesse contexto, quando melhor evocam o “Gojira” de 1954, de Ishiro Honda, mesclando o drama pessoal de um protagonista forte e ressaltando as entranhas dolorosas de um Japão no pós guerra.

Das profundezas do oceano, lentamente o filme faz ressoar o monstro que primeiramente é avistado em uma pequena ilha, onde soldados amedrontados se escondiam e lutavam para continuar vivos diante da realidade de bombardeios e devastação. O que conhecemos em tela, durante os excelentes minutos iniciais de Minus One, é um Japão triste, com cores frias e dessaturadas, sem esperança e com relações pessoais frágeis. Vemos seres humanos exaustos de lidar com tantas perdas. A Guerra levou mães, pais, avós e filhos embora, destroçou famílias e casas, passou como uma avalanche por cima do povo, assombrado por uma bomba nuclear. Minus One nos apresenta, sob essa perspectiva arruinada, o personagem Koichi Shikishima, interpretado por Ryunosuke Kamiki (ator japonês que trabalhou em filmes de Hayao Miyazaki e Makoto Shinkai).

Shikishima é um jovem solitário, que assim como os demais, está desolado pela perda de seus familiares. O jovem serviu o exército japonês, foi à guerra, e, voltando de lá, se depara com uma realidade irreconhecível e que não podia mais chamar de lar. Em sua pequena casa, enredada por cascalhos e vestígios de desabamentos, ele tenta seguir a vida, arrumar um emprego e honrar seu pai e mãe, mortos e representados em um altar como homenagem. Shikishima é um homem que dificilmente desvia o olhar quando vê um problema e é dessa forma que ele se conecta com a jovem Noriko Oishi (Minami Hamabe). A moça passa correndo por ele, tentando fugir de uma perseguição com um bebê nos braços, a criança termina nas mãos de Shikishima, criando daí em diante um forte laço entre esses três.

Enquanto a direção de Yamazaki nos apresenta o lado humano de Godzilla Minus One, sem ter pressa de passar para a ação que o filme evoca, nos perguntamos “onde está o monstro?”, já pressentindo que a qualquer momento, quando ele chegar em cena, não conseguiremos desviar o olhar. O tom do filme indica isso, pelo trabalho de som incisivo, com um grave que nos faz tensionar na poltrona, seja na trilha sonora original orquestrada do longa, seja nas sábias pausas sonoras antes das explosões radioativas de Godzilla, como também na preocupação com a imersão dramática das atuações e na construção complexa dos laços entre os personagens.

GODZILLA MINUS ONE

Shikishima é um herói em sua jornada, sem trocadilhos quanto às escolhas de roteiro aqui, mas a figura do herói é construída aos poucos e ela cresce do melhor modo possível: quando o rapaz desiludido e solitário, buscando por um trabalho que o remunere bem, acha a oportunidade de ouro ao se arriscar para recolher minas aquáticas que sobraram da Guerra. Nessa missão, que envolve mais um grupo de homens em um barquinho de madeira, ele se encontra com seu verdadeiro destino: caçar o monstro que ameaça seu país e que é uma clara alusão à bomba e aos efeitos irreversíveis que sua explosão causou. É a maneira que Shikishima encontra de se redimir por se sentir um derrotado, por não poder salvar seus entes queridos.

Voltemos ao Japão, aos japoneses, ao seu jeito de fazer cinema, e a comparação usada no começo do texto, sobre a diferença na construção narrativa quanto ao deslocamento geográfico do filme. Como no excelente “Godzilla Ressurge (Shin Gojira)” (2016), filme japonês de Hideaki Anno (“Evangelion”) e Shinji Higuchi (“Shin Ultraman”), que faz parte da série de filmes do “Shin Japan Heroes Universe” – releituras de clássicos orientais dirigidos por Anno, mesmo trazendo uma abordagem moderna e descontraída que explora o drama com pitadas de ironia e tom mais ácido, mantém a forma clássica do monstro e dialoga com a cultura tradicional que consegue transmitir tensões existenciais de um povo com profundidade e propriedade. Esse aspecto humano, que passa longe dos filmes anteriormente citados, fazem de produções como esta obras que ficam em nossas mentes.  

O filme de Takashi Yamazaki evoca esse pensamento e traz um Godzilla ainda maior, mais pesado, mais impactante. O monstro brilha mais em Minus One, seja quando seu corpo se acende em um espetáculo de raios letais, ou por sua escala devastadora e assustadoramente imponente dentro da cidade, no peso de seus passos no mar ou em terra. A jornada de Shikishima é cíclica, como um homem que não consegue fugir da Guerra, e mesmo que tente, retorna a ela de uma forma nova e inesperada para vingar suas dores. Ele reencontra sua vontade de viver e também sua disposição para morrer em nome de seus valores e em busca de redenção.

Nota:

Author

  • Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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