A Menina Silenciosa | 2022

A Menina Silenciosa | 2022

Sentimento de despertencimento, abandono e alienação: são as primeiras impressões que vem à mente ao assistir A Menina Silenciosa, longa irlandês dirigido por Colm Bairéad e que concorreu ao Oscar 2023 de Melhor Filme Internacional, colocando a Irlanda pela primeira vez na disputa à premiação. Aos poucos o diretor nos faz adentrar na atmosfera conturbada de um lar disfuncional, onde um casal com muitos filhos e problemas para se sustentar na casinha de fazenda onde moram, tentam achar um modo de lidar com isso.

Filmes com protagonismo infantil como “Onde Fica a Casa do Meu Amigo?” de Abbas Kiarostami, ou “Cría Cuervos…” de Carlos Saura (leia a crítica aqui), tendem a nos cativar ou angustiar com facilidade, pois ao acompanharmos a jornada de uma criança, acabamos intensificando nossas relações diante dos acontecimentos. Nos exemplos citados, ainda que tenham desfechos completamente distintos, todos esses filmes têm em comum a melancolia e uma constante sensação de que algo muito ruim pode acontecer, colocando a fragilidade da criança diante de situações de sofrimento e angústia.

 A Menina Silenciosa é um filme minimalista e que evoca essa angústia, explora muito bem o ambiente rural à sua volta, as sensações, os sons e usa essa linguagem para passar sutileza, nos submergindo àquela realidade sem grandes variações de planos e sem excessos, unidos a uma paleta de cores de baixa saturação. Os pais da jovem Cáit (Catherine Clinch), por necessidade, decidem deixá-la na casa de um casal de parentes para passar as férias escolares. Eles são conhecidos dos pais, mas totalmente estranhos para a menina, que só encontraram quando bebê. Clinch é uma atriz de traços delicados e com um olhar melancólico, este é seu primeiro trabalho de atuação no cinema e ela entrega uma bela interpretação ao assumir a persona de uma personagem singela e solitária que parece constantemente infeliz. 

Presenciamos uma rotina silenciosa onde Cáit vai se encaixando lentamente, através das tarefas na fazenda com Seàn (Andrew Bennett) e nos afazeres domésticos com Eibhlin (Carrie Crowley), por meio de uma fotografia com poucos movimentos de câmera e um formato que deixa tudo mais intimista. Constantemente vemos cortes de imagens do céu através da janela do carro em movimento, planos das árvores, o barulho do vento, simulando o olhar e as memórias na cabeça da menina. Algumas repetições de cenas também funcionam bem como forma de emular lembranças de momentos nostálgicos de afeto, mescladas com a narrativa linear de A Menina Silenciosa.

Manter esses novos instantes vividos na cabeça, parece ser tudo no que a menina pode se agarrar durante seu subterfúgio passageiro, onde ela conhece uma família postiça que se torna mais acolhedora do que a dela própria. “Você não precisa dizer nada. Lembre-se disso. Muitas pessoas perderam a chance de não dizer nada e perderam muito por causa disso” – conselho dado por Seàn em uma conversa à noite na praia, quando estão somente os dois lado a lado, como pai e filha, sob a lua cheia. Uma relação construída e evoluída aos poucos, pelo esforço da convivência, reforçada pelo entrosamento nas atuações, mas feita com uma encantadora ternura. Bairéad abre espaço para que depois dos primeiros momentos de desconforto, sejamos levados ao oposto do que sentimos; trazendo à mente sensações de acolhimento, cuidado e afeto.

 Cáit é obediente, educada e muito calada; ela aprende a se soltar, se comunicar e a sorrir, com um abraço que não recebia em casa, mas que agora subitamente transforma sua relação com o mundo a sua volta. Mesmo que constantemente o filme traga uma sensação de aperto no peito, uma sensação iminente de que algo terrível está por vir, ou algo potencialmente obscuro no passado de Cáit, ele faz com que entendamos que tudo o que a menina está vivendo em seu novo cotidiano emprestado, era tudo o que ela precisava. Conhecer o amor fora do seu lar, vindo de estranhos, é capaz de transformar a menina quase sem voz em uma criança de novo

O apelo sentimental poderia soar piegas e cansativo nessa temática, onde muitos filmes usam um  mote triste e isso é tudo o que basta para criar identificações com o espectador nesse jogo de sensações angustiantes. Mas o longa se revela organicamente mais focado na construção de uma relação que é, por si só, amputada, avulsa e passageira, mas que remenda internamente e preenche os vazios de Cait, ensinando-a através de um envolvimento de absoluta ternura, que, pelo valor das coisas não ditas e de um afeto genuíno, ela possa encontrar sua importância como ser humano. Um dos finais mais emocionantes em filmes de drama recentes, com um abraço que fica na memória por dias.

Nota

Author

  • Mari Dertoni

    Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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