O Cinema de Woody Allen

O Cinema de Woody Allen

Por Matheus Oliveira

De modo geral, o que se pode falar da obra de Woody Allen: que é divertida? Inspiradora? Romântica? Profunda? Incontáveis são os adjetivos. Também os insultos. Há quem diga que o neurótico diretor perdeu a mão, que não faz mais a enxurrada de obras-primas (O Dorminhoco, Manhattan, A Outra, Zelig) que fez nos anos 70 e 80. 

O cineasta, para uns, tornou-se genérico, escritor de histórias medíocres e banais. Para eles, talvez seu último grande filme tenha ficado em 2006, com Ponto Final – Match Point (sua versão do romance Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski).

Já para seus defensores, Woody Allen nunca – ou quase nunca – perdeu a mão. Apenas, certos filmes seus (Igual a Tudo na Vida, Para Roma com Amor) se afiguram menos inspirados do que outros, com assuntos que vez ou outra se repetem. Quando não falam sempre dos mesmos assuntos (amor, desejo, morte, nostalgia), pelo menos conservam certo “clima” em comum, certa substância agradável que nos faz sentir como se estivéssemos no sofá de casa (vide o fellinesco A Era do Rádio, uma ode a tempos e coisas simples).

Todo artista, a cada obra realizada, almeja superar-se a si próprio. A superação consiste em tentar mostrar ou dizer na obra seguinte o que faltou na anterior, e por aí vai. Na insistência de fazê-lo, certa repetição se manifesta. É assim, por exemplo, com Hong Sang-soo (cineasta sul-coreano), artista, digamos, “repetitivo”. Sua repetição é metódica. Existe todo um planejamento englobando a mise-en-scène (a interação entre os personagens, seja por gestos ou por diálogos, seguindo uma lógica rigorosa do enquadramento e da edição). Não à toa seus filmes se parecem uns com os outros, com sutis mudanças apenas notadas por um olhar atento. 

Com Woody Allen, no entanto, a situação é diferente. Ele não é metódico como Sang-soo. Não lhe interessa esse rigor em estabelecer um estilo, mas escrever o roteiro e transferi-lo para a tela do jeito mais simples possível. “Sempre fui preguiçoso”, disse certa vez o cineasta. Este fascina-se tão somente pela magia de fabular. O restante dos detalhes da mise-en-scène é deixado para encarregados mais competentes, com mais, digamos, “erudição cinematográfica” (ele próprio já admitiu sua ignorância a respeito de técnica e afins). Daí sua preferência em trabalhar com veteranos: Carlo Di Palma (Blow Up – Depois Daquele Beijo) colaborou em 12 de seus filmes; Gordon Willis (trilogia O Poderoso Chefão) em 8; Nykvist (Persona – Quando Duas Mulheres Pecam) e Storaro (O Último Tango em Paris), 4. Discutia, com eles, escolhas de câmera aqui e ali, mas nunca era irredutível: carecia de uma visão firme do que pretendia esteticamente para atritar-se, de modo que cedia facilmente a sugestões dos cinegrafistas. 

Notou-se, nos anos recentes, considerável queda na qualidade de seus filmes: Um Dia de Chuva em Nova York (2019) e O Festival do Amor (2020) são dois exemplos. O primeiro é uma reciclagem narrativa do que já se viu de melhor na filmografia do diretor: um triângulo amoroso tendo uma Nova York jazzística e romantizada como pano de fundo. Além da semelhança da trama com a de outros longas seus, existe também a referência aos seus próprios clássicos: exemplo é a cena do passeio de charrete no Central Park, remetendo à mesma presente em Manhattan (1979), na qual Isaac (Woody Allen) e Tracy (Mariel Hemingway), também dentro de uma charrete e no mesmo parque, se beijam. 

Já o segundo não é tanto uma reciclagem, mas representa Woody Allen no piloto automático. Mort Rifkin (Wallace Shawn) vai com sua esposa (Gina Gerson) ao festival de cinema de San Sebastián, e por lá desconfia que sua mulher o trai com Phillip (Louis Garrel). Mas ele não liga para isso tanto quanto deveria, pois vive enfurnado cinema. Assiste a seus filmes favoritos – aos de Bergman, para ser exato. Eis onde entra o piloto automático: o monólogo interior de Mort agiliza a narrativa, mas resolve questões que poderiam ser trabalhadas de um jeito mais criativo. Soma-se a isso referências genéricas (mas nunca ilógicas, pois no enredo Rifkin pensa estar morrendo) a O Sétimo Selo, com a Morte sendo interpretada por Christoph Waltz. 

A referência não é um problema em si. Vários diretores trabalham-na com competência. O próprio Allen o faz. Torna-se um problema quando o filme se utiliza dela como muleta. Longas nada espetaculares, mas inventivos, como Tudo Pode Dar Certo (2010) – o comediante Larry David sendo uma versão otimizada das personas do Allen, transforma o filme numa paródia da carreira do cineasta – e A Roda Gigante (2017) – um Allen mais teatral, consciente das noções de espaço e de encenação, e, “adaptando” a peça Estranho Interlúdio, de O’Neill, regressa à teatralidade de Interiores (1978) e à de Setembro (1987) -, trabalham a questão da referência. Aliás, tal inventividade mostra a força criativa ainda viva do cineasta.

Woody Allen, em um podcast, disse que está onde está por pura sorte. Só sabe fazer o que faz. Disse que se não tivesse se tornado cineasta, estaria até hoje fazendo qualquer outra coisa, “ou entregando cartas ou trabalhando como floricultor”. Ele atribui à sua longeva carreira consequência da sorte. 

Inconstante por toda a sua carreira, tal estado de espírito forjou um estilo ao mesmo tempo volátil e controlado, que põe sua filmografia entre o controle e a pura contingência. “Eu vou me prostituir da forma que eu puder para sobreviver a esta catástrofe [filme]”, disse o cineasta na abertura do filme Woody Allen: Um Documentário. Só mesmo um comentário desse para explicar a feitura de uma obra tão grandiosa e experimental como Maridos e Esposas e outra tão patética e trivial como Trapaceiros pelas mãos do mesmo homem.

Pessimista, sua filmografia é coesa com sua visão de mundo. Allen era um rapaz bobinho mas empolgado, fanático por Jazz (Cole Porter sempre foi seu herói), HQs e Cinema. Começou a ler literatura séria para impressionar as namoradinhas. Inicialmente servindo como artifício de paquera, a Literatura tornou-se ferramenta catártica. Suas paixões iniciais o acompanharam em sua jornada autodidata na leitura de “gente grande”, e o neurótico cineasta, temeroso que o Universo explodisse de tanto que se expandia, e que logo após sua expulsão da faculdade viraria comediante, acabou tendo como pais espirituais Freud, Nietzsche e Dostoievski. Se bem que ele também ama de paixão Bob Hope e os irmãos Marx, talvez os pais espirituais do seu lado cômico. Vendo por esse prisma, seus filmes mais sérios (Interiores, Crimes e Pecados, Maridos e Esposas) parecem ser mais condizentes com sua visão de mundo do que os cômicos, embora estes tenham também, aqui e acolá, sua acidez (vide A Última Noite de Boris Grushenko, que é, segundo Marcelo Costa, “o primeiro de seus roteiros a colocar a trama no mesmo patamar das piadas”). Os assuntos, aliás, o falatório que os explanam, são o verdadeiro conteúdo de Woody: é a sua voz, através de diferentes personagens e situações, gritando em alto e bom som o absurdo do Universo.

Allen ama escrever (usa a sua máquina Olympia SM3 desde os 16 anos). É um fabulista nato. Certa vez, ele disse que nunca teve um bloqueio criativo, pois sempre sabia o que escrever. Bloqueio só tinha quando ia filmar. Ele sempre tinha uma ideia, uma imaginação do que seria certa vida ideal. Mas ele escrevia só sobre o que conhecia. E, ao que parece, conhecia bastante coisa. Nem parece que sua formação intelectual foi a de um diletante desleixado. Leu um bocado de obras. Tomou para si as indagações dos grandes pensadores da humanidade (seu livro Que Loucura! reúne textos que misturam filosofia, psicanálise e história) e criou um cinema próprio: um cinema pessoal e popular, relevante e inócuo, pedante e profundo. Lamenta que durante toda a sua formação, se leu um mundo de livros, deixou de lado outro mundo. Lamentava-se de algumas lacunas: nunca leu Ulisses, Dom Quixote, nada de Virginia Woolf e D. H. Lawrence. Nem Dickens nem Brontë. Por outro lado, amava Hemingway (a figura do escritor americano é louvada em Meia-Noite em Paris). Embora tenha achado Fitzgerald mais ou menos, amou Thomas Mann e Turguêniev. Ainda acrescenta, com sua verve sempre cômica, que talvez tenha sido um dos poucos a ter lido o romance Michael, escrito por ninguém menos que Joseph Goebbels. Eis uma passagem definidora de Woody Allen presente em sua autobiografia A Propósito de Nada: “até hoje, os poetas da Tin Pan Alley são os meus poetas, e nada em A Terra Desolada, Pound ou Auden me toca tanto quanto Cole Porter com ‘você não é digno de aspargos fora da temporada’”.

Mas, afinal, o que se tira desse diagnóstico? Que Woody Allen nunca foi um leitor enciclopédico. Leu pouco, mas leu os essenciais (Cole Porter talvez tenha sido até mais crucial do que as leituras, pois ele as precedeu). É uma das máximas de Nelson Rodrigues: a de que se deve ler pouco, mas reler muito, pois o que importa mesmo é manter-se, segundo o dramaturgo, “em poucos livros totais, três ou quatro, que nos salvam ou que nos perdem, e que é preciso relê-los com obtusa pertinácia”. O cineasta não mergulhou em tudo, mas entendeu tudo. Assistir a seus filmes é assistir a um corpo de obra maduro, que não se leva a sério porque no fim das contas nada disso importa, nada disso é sério. “Estando nas artes”, outro trecho da já citada autobiografia, “eu invejo aquelas pessoas que extraem consolo da crença de que o trabalho que elas criaram vai sobreviver e ser muito discutido”. 

Talvez o mar de inspiração que surja em Woody Allen, mar que não se esgota, venha de sua insatisfação com a vida e com a inutilidade da criação artística. Há sempre uma história para contar, e ele sente que precisa fazê-lo – afinal, segundo o pequeno Alvin Singer, de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, o Universo está se expandindo e um dia explodirá”. Ele precisa escrever, dirigir, contar as histórias que conta, mesmo quando são medíocres. A arte, no fim das contas, pertencente a um mundo sem sentido, criada por uma civilização que veio de um lugar obscuro e que irá para outro também obscuro, é por excelência inútil. A arte o é porque discute algo que desconhece. Aliás, nem mesmo as perguntas que esta faz – e fez – resistirão à entropia. E tudo um dia sumirá. Portanto, importa se um filme seu é genial e outro, patético? O que importa se Sang-soo é mais rigoroso, mais metódico? Algo vai prevalecer diante da destruição? Não. Woody Allen, nesse sentido, sai ganhando, pois não está nem aí. Seus filmes são uma parcela de sonho em meio ao absurdo (vide A Rosa Púrpura do Cairo). 

Grande artista, Allen só não tem grandes pretensões. Ele até quis tê-las, mas era acomodado demais para isso. Levou sua vida como uma canção de jazz: deixava se levar pelo swing. Sua vida foi uma sequência de tiros no escuro. Sempre fez os filmes que queria fazer (tinha carta branca de Charles H. Joffe, seu mais longevo produtor). Sempre escreveu sobre o que queria. Fez filmes de uma profundidade que ele mesmo se achou incapaz de criar: já são eternos o bergmaniano Interiores e o fellinesco Memórias. Ninguém falou tão bem sobre Amor e Morte quanto Woody Allen (Hannah e suas Irmãs). Ninguém louvou e ridicularizou ao mesmo tempo a intelligentsia americana (o acadêmico na fila do cinema em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa). Allen é mais profundo do que aparenta ser. Talvez, por ter envelhecido, sua visão de mundo tenha se simplificado, e a consequência disso é ter começado a fazer filmes que representassem tal como é essa visão de mundo simplificada, mas expandida em profundidade em diálogos corriqueiros. Ele não precisa mais dos floreios de outrora. Despojou-se. Sua obra agigantou-se, de modo que ao vê-la por fora é coisa bobinha, genérica. Conseguiu o que a maioria dos artistas busca por toda a vida: o maior dos paradoxos. Eis o paradoxo: ser complexo sendo modesto. O cineasta, de tanto fazer filmes, passou a soar genérico e repetitivo. Se um dia foi mais ousado, não significa que perdeu a mão: apenas passou a comportar carga maior de verdade numa linguagem sucinta, sintetizadora. Atingiu um ponto na Arte no qual a verdade, tão próxima de ser resolvida, torna-se prosaica por estar perto de ser desmascarada. Depois disso, ela se torna inútil, pois realizou a sua função, que é a de questionar.

Talvez condense a filosofia alleniana uma cena presente em Manhattan – eis seu contexto: Isaac (Allen) confronta seu amigo Yale (Michael Murphy) por sua relação com Mary (Diane Keaton). Mary não estava mais com Yale. Após romper com ele, foi para os braços de Isaac. Ocorre depois uma desavença: Mary reata com Yale, e Isaac reprova isso. Eis o confronto: este ocorre na sala onde Yale leciona. Eles discutem o caso. Mas tem um curioso detalhe: o próprio modo como a cena é executada trata a discussão como picuinha: detrás de Isaac e Yale figura um esqueleto que rouba a cena. Enquanto eles discutem, chamam mais a atenção o esqueleto do que a discussão. Esta cessa, nada se resolve. Yale e Isaac saem de cena – mas o esqueleto é o último a figurar no plano. Talvez se trate de um simbolismo que diz: todos os homens e mulheres, felizes ou não, solteiros ou casados, ricos ou pobres, serão no futuro esqueletos como aqueles.

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