The Watermelon Woman | 1996

The Watermelon Woman | 1996

“Às vezes você precisa criar sua própria história”

Filhos, filhas e filhes da diáspora africana não conhecem sua história. O processo de escravização, brutal sequestro de pessoas negras do continente africano para uma forçada travessia do oceano atlântico e realização de trabalhos forçados nas Américas, envolve também o apagamento familiar, individual e identitário de pessoas, desumanizadas pelo branco europeu. Faz parte dessa violência ocultar e aniquilar nomes, vínculos e referências.

Cheryl Dunye, primeira diretora negra e declaradamente lésbica a dirigir um longa-metragem nos Estados Unidos, exerceu tal pioneirismo com The Watermelon Woman, que fez sua estreia em 1996 no Festival de Berlim. As referências afro-americanas femininas no cinema estadunidense aconteciam, até a década de 90, dentro das telas, por muitos anos em papéis estereotipados como as Mammys, as empregadas domésticas, as Jezebel, as Sapphire, e a lista segue. Em 1996, o mundo já conhecia Faça a Coisa Certa, de Spike Lee e Filhas do Pó, de Julie Dash.

É da falta de referência que Cheryl Dunye cria, brilhantemente, The Watermelon Woman. A diretora, que é também roteirista, editora e protagonista do longa, interpreta a também Cheryl, uma jovem que trabalha numa videolocadora, com dificuldades de se afirmar como cineasta, mas que está trabalhando num documentário investigativo sobre uma atriz negra que atuou em diversos filmes da década de 30, mas que era creditada apenas como watermelon woman.

Em uma atmosfera nostálgica e deliciosa, Dunye nos insere no saudoso mundo das videolocadoras, das pesquisas em bibliotecas, cinematecas e arquivos, das encomendas de filmes, do macacão jeans. Ela brinca com a montagem, tornando tudo muito leve e mantendo o bom humor mesmo quando nos atinge certeira em suas denúncias e nas verdades que revela da forma mais simulada possível, como só o Cinema possibilita.

The Watermelon Woman é feito como documentário, de alguém que faz um documentário sobre uma atriz. Faz uso da narração, a própria protagonista nos conta os pensamentos e descobertas de suas pesquisas, mesmo em cenas em que ela simplesmente não se importa com o que está sendo dito por quem aparece sendo entrevistado. Neste ponto, há um tanto das ideias de Acossado, de Jean-Luc Godard, unido aos jump cuts, aos cortes bruscos e interrupções de trilha sonora. Talvez uma homenagem ao cineasta, talvez uma ironia.

Um bom exemplo do desdém que Dunye por vezes demonstra pelas pessoas que sua personagem entrevista, é quando mostra a fala de uma acadêmica feminista branca sobre Hattie McDaniel. A diretora a permite falar somente pelo tempo necessário para que entendamos sua lógica racista: a da branquitude que gosta de comparar a escravização do povo negro com a imigração italiana, que romantiza a escravidão quando descreve as mammys como mulheres grandes e símbolo de abundância.

Cada ato de busca de Cheryl pela história da watermelon woman denuncia as dificuldades do povo negro de construir sua própria história. Nos lembra, a todo momento, a importância de nomear atrizes e atores que assistimos. A busca por arquivos a faz confrontar o feminismo branco versus o feminismo negro, findando na total ausência de materiais ou registros sobre feminismo negro ou sobre pessoas negras. O que há de registro é um livro sobre mulheres lésbicas brancas escrito, ironicamente, por um homem branco.

A importância da identificação e da representatividade são chaves para o processo de The Watermelon Woman. A diretora conecta sua protagonista à atriz investigada, the watermelon woman, cujo nome descobre ser Fae Richards – uma mulher negra, lésbica e amante do cinema, tal como ela própria. Essa conexão ultrapassa o que seria necessário à realização de um documentário, se tornando uma referência para a personagem Cheryl não só da mulher negra, mas de uma presença sáfica no Cinema – uma dupla identificação encontrada às duras penas. Tudo, inclusive o próprio filme, faz parte da autoafirmação tanto de Cheryl Dunye como de sua protagonista como cineastas.

As revoluções de Dunye também se transformaram em desnecessárias e heteronormativas polêmicas que até hoje perduram, e que dizem respeito ao que se discute sobre a presença de cenas de sexo no Cinema. Sem adentrar profundamente em tal discussão, no recorte de The Watermelon Woman, a presença do sexo lésbico nas telas é de extrema relevância para a representatividade LGBTQIA+, que pouco ou nada se via em tela em 1996. A diretora consegue imprimir sensualidade e beleza ímpares na relação entre os corpos negro e branco, somando à sua abordagem de relacionamentos interraciais no longa, já que a personagem Cheryl se apaixona por Diana (Guinevere Turner), uma mulher branca nascida na Jamaica. 

Não é exagero dizer que Cheryl Dunye foi brilhante em The Watermelon Woman. Mais do que um filme, tornou-se uma obra de reparação, ou, ao menos, uma tentativa de reparação do apagamento da história negra. Ela usa do Cinema para não só criar sua história, sua identidade, como busca de inspiração e representatividade nas telas, mas a história de todas as pessoas negras que foram sequestradas de seus países e que não têm registros de sua origem. Cria e faz um recorte da história das pessoas negras a partir da sua própria identidade: uma mulher negra, preta retinta, lésbica. As mulheres negras e lésbicas não tinham para onde olhar para se identificar. Cheryl também não. Então, ela abre essa porta.

Fae Richards sai do espaço de ser só Watermelon Woman para ser Fae Richards, atriz, mulher negra e lésbica. A necessidade de se criar um personagem que represente as pessoas negras é reflexo do apagamento e da violência contra o povo negro. Realizar isso através do Cinema é uma digníssima homenagem a todas as mulheres negras artistas dos tempos passados.

Author

  • Natália Bocanera

    Na escassez de tempo, entre advogar e dedicar-se à sua dezena de felinos, escolheu o cinema como ponto de equilíbrio e formação individual do seu "eu", em permanente descoberta.

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