O Homem dos Sonhos | 2023
Diretor: Kristoffer Borgli
Título Original: Dream Scenario
Produtoras: A24, Saturn Films, Square Peg
Produção: Nicolas Cage, Ari Aster, Lars Knudsen, Jacob Jaffke, Tyler Campellone
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Já faz algum tempo que falamos do inconsciente e de como sabemos pouco sobre nós mesmos. Certamente os estudos psicanalíticos e as filosofias existencialistas marcaram a história recente, influenciando a produção cinematográfica e as artes em geral. Quando mesclamos essas concepções com a globalização e seus efeitos, identificamos uma distopia que parece inevitável e que volta e meia permeia os filmes atuais. O Homem dos Sonhos, de Kristoffer Borgli, bebe dessa fonte e traz à tona os dilemas da mente humana, a subjetividade e as frustrações, bem como a interferência das redes sociais em nossa vida.
Nicolas Cage, também um dos produtores do filme, interpreta Paul Matthews, um professor universitário de biologia, aspirante a pesquisador e escritor na área. Sua apresentação é a de um homem comum que busca lidar com seus desgostos e com a falta de atenção que julga necessária para si. Na universidade, os alunos parecem que não são fãs de suas aulas; em casa, com duas filhas adolescentes e a esposa, a relação não é das mais afetivas. Logo na primeira cena temos a projeção de um sonho da filha mais nova, Sophie (Lily Bird), com o pai. O que chama a atenção é que seu pai está sempre passivo enquanto o pesadelo acontece. Coisas caem do céu e a menina pede ajuda, mas Paul nunca reage. Se o sonho é uma representação inconsciente, qual é a ideia que Sophie criou de seu pai? Um retrato da indiferença? Certamente, ao ouvir a filha narrando a situação, Paul se debate com essas questões, que crescem cada vez mais conforme o estranho toma conta do roteiro.
Esse evento funciona como o gatilho da crise existencial do professor e chefe de família Paul Matthews. Afinal, o que somos aos olhos dos outros? Os méritos que julgamos ter e que não se concretizam são culpa de quem? Um mundo que não nos reconhece como somos, ou uma subjetividade recheada de expectativas em excesso? Fato é que o “eu” sempre é inacessível. Por um lado, temos uma ideia do que somos, mas nunca saberemos se é isso que os outros realmente pensam sobre nós. Por outro, nos construímos com base nas reações à nossa volta, interpretamos os olhares e criamos as mais diversas teorias sobre o que somos àqueles que nos observam. O Homem dos Sonhos aborda o grande dilema na relação com o “Outro”, tão clássico ao Existencialismo. Ao mesmo tempo em que o outro me encara, eu também me torno “outro” ao me fazer enxergar pela mirada do mundo, como um espelho infinito.
O roteiro de Borgli é muito feliz em retratar o sofrimento de seu personagem principal de forma inventiva. O sonho é seu artifício, estabelecendo um cenário caótico que representa o conflito interno de Paul. A estranheza cresce à medida que Paul vai descobrindo que várias pessoas estão sonhando com ele, e todos de uma forma muito parecida. Amigos, alunos, e até desconhecidos, têm sonhado com a figura de Paul, sempre como um personagem observador de algum fato. São geralmente situações em que a pessoa está em perigo e, aleatoriamente, o professor caminha próximo, mas alheio a tudo o que acontece no sonho.
Esse fenômeno absurdo cresce e logo Paul se transforma em uma espécie de celebridade (e parece gostar disso). Vira “O Homem dos Sonhos”, inclusive sendo procurado para campanhas publicitárias. No primeiro momento isso é prazeroso para ele, já que parece finalmente receber os olhares que sempre quis, ainda que de forma inesperada. Porém, ser visto demais também pode vir a ser um problema. A imagem de um “loser”, um cara constrangedor, que não é bem vindo nos círculos que gostaria e que não é levado a sério, vai ganhando evidência. Matthews se torna indefeso diante dos outros. Essa é uma condição de todos nós, que não controlamos a forma plena de como somos vistos.
Quando os sonhos deixam de ter Paul como sujeito passivo e começam a tê-lo como vilão, as coisas mudam drasticamente. Muitas pessoas começam a ter pesadelos, onde o professor é um assassino, torturador e comete atos perversos, a tal ponto que não conseguem mais conviver com sua figura real. As aulas são canceladas porque os alunos sentem medo, os amigos se afastam, a família recua diante da imagem que está sendo montada sobre Paul. E ele, ainda com uma certa ingenuidade, tem interesse em publicar seu livro sobre formigas e ser reconhecido por seu trabalho, e não apenas como “O Homem dos Sonhos”.
A situação se torna insuportável quando Paul se transforma em um fragmento identitário. A questão é: quem realmente somos? Na era das redes sociais, as identidades são facilmente manipuladas. Paul Matthews não consegue se reconhecer mais porque, ao olhar para os outros, enxerga o reflexo de si da pior forma possível, certamente a que ele não gostaria de ter. O inferno são realmente os outros, os julgadores externos do “eu”.
Nicolas Cage tem a capacidade de transparecer todos esses dilemas pelos olhares e trejeitos de seu personagem. É, ao mesmo tempo, um homem confuso com uma ingenuidade passível de pena, e um sujeito arrogante e constrangedor em certos momentos. Na tentativa de se aproveitar do que acontece com ele, Paul é, na verdade, consumido por tudo. É mais uma excelente atuação de Cage que parece se sentir muito à vontade com personagens vivendo conflitos identitários, como no caso de Adaptação (2003), de Charlie Kaufman.
Quando falamos dos problemas existenciais já pensados desde, principalmente, o século XX, O Homem dos Sonhos se dá muito bem com sua forma caótica e montagem rápida e insinuante. Mas, quando se alia com questões mais atuais, frutos do capitalismo, acaba deslizando ao abraçar muito mais do que conseguiria. A distopia que se cria através do mercado publicitário em torno dos sonhos e a tentativa de também tratar a cultura do cancelamento, se tornam vazias no final do filme. São pinceladas que poderiam ser trabalhadas com mais cuidado e mais tempo.Depois de ter sua vida arruinada pelos sonhos dos outros, Paul Matthews é um homem frágil e solitário que ainda não sabe em que pautar a sua subjetividade. Ou melhor, quem é Paul para o inconsciente dos outros? Ou quem somos nós no inconsciente dos outros? Seriam esses os questionamentos mais pertinentes ao assistirmos O Homem dos Sonhos. O filme é muito interessante nesse sentido, apoiando-se na atuação de Nicolas Cage e no universo onírico que o cerca. Há uma proximidade com o sucesso recente de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (2022), também produzido pela A24, que trata de um tema existencialista a partir dos multiversos, moldando-se por uma linguagem mais dinâmica e bastante atual, sendo mais eficiente do que o trabalho de Kristoffer Borgli.