Esperança e Desolação em Sem Novidade no Front | 1930
Por Gustavo Rego.1
O “realismo romântico”2 de Hollywood é quase sinônimo de entretenimento e escapismo. Mas, em Sem Novidade no Front (1930), o diretor Lewis Milestone mostra que as superproduções podem melhor dimensionar os horrores superlativos da “Era da Catástrofe” (Hobsbawm)3 , ainda mais se combinado aos traços do cinema de vanguarda. Milestone utiliza tanto um primeiro plano mais alongado que destaca a reação exagerada do ator a algum evento (tão presente nos filmes vanguardistas dos anos 1920) quanto planos com profundidade de campo (que aos poucos ganhariam novamente as telas até mostrar toda a sua força expressiva com Regras do Jogo [1939] e Cidadão Kane [1941]) para dimensionar a dureza dos obstáculos da guerra de trincheiras ou contrapor duas cenas contraditórias ocorrendo em um mesmo plano.
A decupagem tampouco se contenta com uma ilustração mais didática dos acontecimentos, mas impõe um ritmo expressivo. Por exemplo, quando, no meio da batalha, enquanto ouvimos os tiros, vemos o primeiro plano de cada um dos soldados principais e uma pausa em tela preta de alguns poucos segundos que são suficientes para nos fazer sentir a angústia e o cansaço daqueles homens. Ou ainda, na montagem que intercala em ritmo frenético a metralhadora e os corpos sendo por ela derrubados.
Este filme é uma jóia rara de uma Hollywood, já a todo vapor, mas que ainda não havia caído na caretice do Código Hays, que teria proibido – por exemplo – as mãos decepadas ou a cena em que o jovem soldado se apaixona pela moça que se prostituiu em troca de um pedaço de pão. Mais ainda, sintetiza muito bem as contradições de uma época que viveu um grande florescimento artístico, ao mesmo tempo em que palavras como “genocídio” entravam pela primeira vez nos dicionários. Alguém poderia até achar que era o próprio horror que estava servindo de combustível para a arte sublime.
Esta é uma ilusão que o argumento do filme, de certa forma, compartilha – mas que já não é mais possível hoje, mais de 90 anos depois. Em Sem Novidade no Front, apesar de todos os horrores da guerra, o senso de empatia, solidariedade e demais valores sublimes nunca desaparecem do coração daquele que – depois de uns bons minutos de projeção – desponta como protagonista, Paul. No front, ele faz amizades verdadeiras, compreende a irracionalidade de matar homens comuns em nome de uma noção abstrata de “nação” e até se apaixona brevemente por uma mulher. Mas hoje sabemos que, ainda que para muitos o entusiasmo chauvinista dos alistamentos voluntários dos primeiros meses da Primeira Guerra tenha se convertido em profundo apelo pacifista (do qual Sem Novidade no Front é um dos mais importantes documentos), esta é apenas parte da história. A barbárie é sempre capaz de gerar mais barbárie. A mesma lama, o mesmo barulho persistente, a mesma falta de botinas, o mesmo convívio com a morte, a mesma falta de comida, dentre tantos outros horrores vividos pelos soldados na tenebrosa guerra de trincheiras que pareciam intransponíveis e que o filme retrata tão bem, criaram monstros sociopatas como Adolf Hitler.
É isto que faz este filme parecer tão preciso e, ao mesmo tempo, tão equivocado. Alguns anos depois de seu lançamento, Hitler tornava-se “führer” da Alemanha. Não houve um instante sequer de dúvidas sobre suas intenções de mergulhar o mundo em uma nova guerra mundial. Mas o trauma deixado pelas trincheiras fez com que aqueles que poderiam detê-lo adiassem demais a sua ação, o que, no fim das contas, só fez a tragédia humana ser ainda maior. Porque o conflito que o mundo encarava nos anos 1930 já não era o mesmo dos anos 1910 – infelizmente, muitos observadores na época não viram ou não quiseram ver isso. Nos anos 1910, o conflito começou mesmo enquanto todos diziam “não querer” que ele ocorresse. Ninguém mais lembrava ao certo do estopim da guerra e o “culpado” por ela era decidido numa briga de versões. Um dos momentos mais espirituosos do filme é quando um dos personagens diz que irá desertar, afinal, “se o Kaiser não quer a guerra, eu também não!” É também muito interessante que logo no início da projeção haja um letreiro dizendo que o filme não busca “identificar culpados”, em conformidade com a diplomacia americana que sempre se afastou do exagero punitivista do Tratado de Versalhes.
Mas o evento que se avizinhava ao lançamento do filme teria, sim, causas e culpados bem conhecidos…
Talvez a última cena de Sem Novidade no Front (1930) seja um vislumbre sobre o que ocorreria – uma espécie de retorno ao solo depois de um devaneio. Paul está novamente na trincheira após reencontrar seus parentes e sofrer o luto de ter todos os seus amigos mortos. Ele vê uma borboleta e – encantado pela natureza e por este símbolo de liberdade, mudança, renascer, beleza e esperança – estende a mão distraidamente. Mas, com isso, deixa a cabeça à mostra e morre…
- Gustavo Rego é sociólogo, historiador e criador do canal Cineolho (YouTube). ↩︎
- “Realismo romântico fechado” é um conceito criado por Mark Cousins, no livro História do Cinema, para definir o estilo predominante dos filmes hollywoodianos. Em síntese, esse estilo busca combinar o naturalismo que facilita a criação de uma impressão de realidade no espectador (em outras palavras, parecer real para facilitar a imersão de quem assiste) a apelos fantásticos e dramáticos que amplificam as reações emocionais. Ideia semelhante foi desenvolvida por Ismail Xavier, em O Discurso Cinematográfico. Sobre este último, eu publiquei um vídeo intitulado “O estilo dos filmes comerciais (Ismail Xavier)”que você pode assistir aqui.
↩︎ - Em Era dos Extremos, o historiador Eric Hobsbawm denomina de “Era da Catástrofe” o período entre 1914 e 1945, marcado pelas duas Grandes Guerras, pela Crise de 1929 e pela Revolução Russa. Ou seja, um período marcado por matanças, crises e convulsões sociais sem paralelos na história da humanidade. ↩︎
Leia aqui nossa crítica sobre Nada de Novo no Front (2022), releitura dessa história que recebeu diversas indicações ao Oscar.