Paris, Texas e a Jornada Trágica de Travis | 1984

Paris, Texas e a Jornada Trágica de Travis | 1984

Por Matheus Oliveira

Montanhas. Horizonte sem fim. Marasmo inefável. Parece a descrição da paisagem de uma obra Fordiana. Diferentemente do que vemos nas obras de John Ford, em Paris, Texas, longa dirigido pelo alemão Wim Wenders (Dias Perfeitos, Asas do Desejo) e escrito por Sam Shepard (Os Eleitos), não há cavalos ou carruagens levantando poeira ao longo de estradas pedregosas, nem forasteiros trocando tiros com John Wayne. O Wayne de Wenders se chama Travis (Harry Dean Stanton). Este não é combativo, não carrega consigo uma pistola. Mas, tal como a lendária figura do faroeste, ele é triste, errante e fala pouco – ou só o necessário -, convive com o peso do passado nas costas, e procura algo que perdeu. 

Paris, Texas abre com Travis, homem de meia-idade, sem água e sem comida e com uma barba maltrapilha por fazer, perdido no deserto do Mojave e “vigiado” por uma águia-careca (símbolo máximo da nação ianque; assim como as cores da bandeira estadunidense – azul e vermelho -, presentes em grande parte dos planos). Ele está numa andança que já dura quatro anos. Supostamente com amnésia, e, para piorar, não fala (mas não é mudo). Descobrimos que tem uma família preocupada com seu sumiço – seu irmão Walt (Dean Stockwell) e sua cunhada Anne (Aurore Clement). Tem um filho chamado Hunter (Hunter Carson). Este é criado pelos tios desde que o pai sumiu, tem sete anos de idade, e já assimila o seu entorno com considerável acurácia: quando vê seus pais juntos na filmagem caseira, seu olhar apiedado indica que ele compreende o que se passou – aliás, capta o ocorrido não em sua completude, claro, mas de uma forma geral mesmo: houve um rompimento doloroso. Ele sabe que seu pai ainda ama sua mãe, Jane (Nastassja Kinski); mas a versão amada é uma que não existe mais (“não é ela, é só a imagem dela no filme”).

Travis a caminho de Paris, Texas

A estadia de Travis na casa do irmão consiste em se reaproximar do filho, que, embora confuso com o fato de ter dois pais, parece sentir-se privilegiado com tal condição (“acho que tenho sorte”, responde Hunter ao colega da escola, ao ser confrontado sobre o seu “outro” pai, isto é, o autêntico). Tentando diversas vezes a reaproximação, Travis falha em todas. Aliás, o que os reconcilia não é um esforço seu, mas a sugestão de Walt em exibir um nostálgico filme caseiro da família se divertindo nas férias, com o intuito de recuperar sentimentos adormecidos (e de quebra, para o espectador, revela-lhe o que este almeja que seja revelado: um resumo intuitivo – porque puramente visual – da história daquela família). É simbólica a exibição do filme: as imagens são vivíssimas, como se fossem as próprias memórias dos personagens. Para Travis, no entanto, elas são agridoces (a trilha de Ry Cooder reforça tal sentimento), pois mostram um passado feliz que já não é possível ser recuperado. O que sedimenta a reaproximação entre pai e filho – além dos registros afetuosos entre ambos apresentados na projeção –, é uma lacuna em comum em suas vidas, lacuna esta salientada pelas imagens fílmicas: Jane. A cena é poderosa porque inventiva: somos voyeurs de tais memórias – estas tornam-se também nossas, assim como a culpa que Travis volta a sentir ao contemplar sua ex-mulher na projeção. 

O ambiente em Paris, Texas é permeado por lacunas. Elas são evocadas através da fotografia de Robby Müller, que registra vastas e deslumbrantes paisagens desérticas do sul estadunidense, de modo a puxar desses registros externos atributos internos dos personagens (a estrada interminável ou o trilho que se perde no horizonte como reflexo da vontade incessante de Travis de fugir do que o amedronta). “Não há nada para lá”, diz Walt ao irmão em certo momento,  pedindo-lhe que pare de vagar sem destino. Ele está certo, mas em partes: não entende que o irmão tem uma sina, e que esta tem a ver com o que houve nos quatro anos de sumiço (a briga com a mulher, a fuga dela com o filho para se proteger do marido ciumento). Trágico personagem, Travis vive atormentado pelos arrependimentos do passado, por atitudes erradas que feriram pessoas amadas. Sua andança sem fim significa fugir da dor, de tudo e de todos (“durante cinco dias eu corri, até que qualquer sinal de civilização tivesse desaparecido”) – e da imagem que criou da esposa. 

Tema recorrente em Paris, Texas – quiçá o principal – é o da idealização da mulher pelo olhar masculino. O arco trágico de Travis vai de encontro a uma ideia que este tem/tinha de Jane. Em certo momento, um Travis levemente embriagado fala de sua mãe para Hunter: ele explica ao garoto que seu avô tinha uma certa ideia do que ela significava (“Ele olhava para ela mas não a via, ele via a ideia. Dizia às pessoas que ela era de Paris. Era uma grande piada, mas ele começou a dizer para todo mundo, e parou de ser uma piada, ele passou a acreditar”). Travis, outrora um filho, via a mãe como santa; já o marido, como imoral, depravada. Herdando o “vírus” do pai, também isto era o que Travis via em Jane: ele não avistava a mulher, mas sim uma construção social machista. A cena do peep-show na cabine, nesse sentido, é simbólica: as mulheres vendo o que veem (isto é, elas próprias, sendo o que são, já que estão diante de um vidro espelhado), ao passo que os homens detrás daqueles vidros veem o que lhes convêm, enxergam aquilo que querem enxergar. A loira Bibbs, fantasiada de enfermeira, com quem Travis tem uma brevíssima conversa antes de trocar de cabine, seria a visão fetichista que ele guarda de uma Jane vulgar, caipira, bem americana (Texas). Tal visão se contrapõe com a imagem da esposa de seu irmão, Anne, outra loira, que se afigura recatada, chique e “afrancesada” (Paris).

Tal como tantas mulheres do cinema (como Judy/Madeleine, em Um Corpo Que Cai), também Jane é permeada por um mistério indescritível que ultrapassa sua literalidade: ela também passa a ser o que depositamos de ideal nela. Sua prolongada ausência sustenta a narrativa de Paris, Texas: a estruturação desta atrasa ao máximo as respostas sobre o seu sumiço para que sirva de intensificação dramática (daí a força do monólogo final entre o ex-casal, acumulado de informações reveladas de última hora). Demorando a aparecer em cena, sua presença imaginada é reforçada por sua ausência física (assim como Marlon Brando, em Apocalypse Now, que tem sua aura engrandecida pelas histórias contadas a seu respeito). É apresentada primeiro na fita exibida (cena do Super 8); só depois aparece em carne e osso (isso com mais de uma hora de filme corrido). Hunter e Travis, com a informação sobre o paradeiro dela, a seguem até o seu local de trabalho – o filho avista a mãe em um carro vermelho, e tem certeza de que é ela: seus cabelos loiros figuram antes de seu rosto (e mesmo assim sabemos quem é). Ela estaciona o veículo em um lugar que a princípio parece um bordel – descobrimos em seguida que é algo diferente, mas com uma ideia ligeiramente semelhante: um reduto para homens solitários se entocarem e desabafarem com lindas mulheres. Parece proposital o esforço em provocar um mal-entendido: faz o espectador associar a imagem de Jane a um ambiente devasso – e esta associação é a de Travis. 

Paris, Texas é, segundo o crítico e historiador de cinema Claude Beylie, “um western imóvel, sem diligência, sem xerife, sem índio, uma viagem ao deserto tendo como guia um Ulisses taciturno e mudo”. O longa tem um aspecto mitológico, epopeico (os personagens de Wenders remetem vagamente aos da Odisseia, de Homero, com Travis sendo Ulisses e Jane, Penélope). É estruturado implicitamente em três blocos e um comovente epílogo: o primeiro mostra o retorno de Travis à “civilização” graças ao irmão (o êxodo do deserto do Mojave para a cidade de Los Angeles); o segundo, a reconquista do amor de Hunter; o terceiro, a jornada deste, junto ao pai, em busca da mãe na imensa cidade de Houston; já o epílogo trata do reencontro entre mãe e filho, com Travis excluído dele. Tal como Ethan (John Wayne), em Rastros de Ódio, que salva Debbie, que devolve-a para sua família, para em seguida sumir como um espectro na poeira desértica; também a sina de Travis é a de vagar pelo mundo após salvar o mocinho (o filho) e a mocinha (a ex-mulher). Retorna ao velho marasmo, mas desta vez com a amarga missão cumprida:  de juntar quem separou. Ao fim de sua jornada de autoconhecimento, de redescoberta, percebe que o obstáculo era ele próprio. 

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