Eu, Capitão | 2023

Eu, Capitão | 2023

Em 2023, o Mar Mediterrâneo foi o trajeto de migração para mais de 78.000 pessoas saídas do continente africano, considerada uma das rotas mais mortíferas do mundo. Estima-se que desde 2014 mais de 19.500 pessoas morreram nessa tentativa. Esse triste cenário não é novidade nos países mais pobres, assolados pelas guerras, pela intolerância religiosa e pelos reflexos da exploração capitalista. Eu, Capitão, filme dirigido pelo italiano Matteo Garrone, usa dessa importante premissa para mostrar o martírio de dois jovens africanos em busca da salvação, mas, ainda assim, coloca essa jornada sob uma perspectiva europeizada.

Garrone já demonstrou seu interesse pela violência em Gomorra (2008), principalmente a forma como esse sistema acaba cooptando e influenciando a vida dos mais jovens. Aqui, em sua obra mais recente, o cineasta mantém essa preocupação com as gerações futuras, nos apresentando a ingenuidade dos sonhos de Seydou (Seydou Sarr) e Moussa (Moustapha Fall) sendo destruída pela dura realidade humana. Os dois adolescentes senegaleses de 16 anos têm a ilusão de que a Europa seria a única salvação possível diante da pobreza de suas famílias. Seydou é o personagem principal, vive com a mãe e suas irmãs em um casebre no subúrbio de Dacar. Junto com seu primo, Moussa, resolve trabalhar escondido para guardar dinheiro suficiente e irem tentar a sorte na Itália, podendo sobreviver da música, já que ambos são compositores.

A partir daí, Eu, Capitão segue um caminho comum aos filmes desse gênero: mostrar o sofrimento da viagem clandestina e a desconstrução da utopia. Porém, algumas escolhas do diretor são interessantes e acabam nos remetendo a um conceito muito caro ao povo africano: o Ubuntu. O significado da palavra é o reflexo da rica cultura desse continente tão oprimido ao longo da história: “eu sou porque você é”. Ou seja, a humanidade se faz a partir do conjunto, formando a resistência necessária para existir. Ubuntu é uma ética que se baseia nos ritos circulares, nas danças, na ancestralidade e na criação de um vínculo que refuta o individualismo, fortalecendo todos que fazem parte da comunidade.

No primeiro ato do filme, quando conhecemos os personagens e suas condições, há uma força que perpassa por todos. O vilarejo é feliz, todos se preparam para o Sabar, festividade que celebra a vida. As irmãs e a mãe de Seydou se embelezam entre vestidos coloridos e penteados exuberantes para o grande evento da noite, onde a reunião se dá em um círculo com tambores e danças. Mas a riqueza cultural que vemos, na consciência do jovem sonhador, não é a riqueza física, esta que daria conforto a sua família. Logo, a solução seria ir embora.

Novamente, o vínculo de resistência é importante para Garrone. A amizade dos dois jovens e o amor de Seydou por sua família são notáveis, levados por um ritmo cadenciado e pela excelente atuação de Sarr, com seu olhar doce e complacente. Ele compreende as preocupações da mãe quando suspeita de sua fuga, mas sua ida é a doação necessária para o fortalecimento de todos.

Saindo de Senegal, a beleza e alegria do Sabar dão lugar à violência física, a cruel realidade de quem se arrisca nesse percurso tão perigoso até a Europa. Seydou e Moussa são lançados em um novo contexto, agora cercados pelo deserto e de outros migrantes com os mesmos anseios. Os enquadramentos mostram mais os espaços vazios, o foco diminui e nos dá a sensação de que os dois, junto com os outros migrantes, estão perdidos, reféns das incertezas.

Essa mudança, a decadência no desenvolvimento dos personagens, afeta a condução de Garrone. Eu, Capitão passa a adotar uma narrativa comum, pouco inventiva e sensível, apelando para o realismo da violência com dois breves momentos de fantasia. O primeiro é quando Seydou presencia a morte e a frustração por não conseguir salvar uma de suas colegas de caminhada no deserto.  A segunda é quando tudo parece perdido, mas um anjo (Malaika na cultura da África Oriental) o leva para ver a mãe e lhe dá o recado de que o filho ainda está vivo. A separação dos primos, a tortura, o tráfico humano, todos os empecilhos são colocados diante de Seydou.

As soluções para esses obstáculos são quase milagrosas, mas abrindo mão do realismo fantástico, que poderia render um final melhor ao filme. A clássica jornada do herói transforma Seydou no piloto do barco que vai transportar os migrantes até a Itália. O diretor europeu, ao contar a história do flagelo daqueles que se veem forçados a abandonarem suas terras, acabou por dar ares de que realmente chegar à Europa é a salvação, com todos prontos para darem um futuro melhor aos que precisam.

Na última cena de Eu, Capitão vemos a alegria de todos na precária embarcação. É quando lembramos que durante toda a projeção há apenas uma referência sobre a ilusão europeia: quando o suposto vendedor da viagem clandestina nega auxílio aos dois adolescentes, falando que a Europa que vemos na TV não existe e recomendando que não saiam da África. Sentimos, então, que uma história tão relevante não foi bem aproveitada, parecendo que realmente a vitória é chegar ao mundo desenvolvido.

São apenas as ilusões de Seydou e Moussa, e de tantos outros africanos, sem mais aprofundamentos, sem mais reflexões políticas necessárias sobre o tema, como o faz, por exemplo, Abel Ferrara em Napoli, Napoli, Napoli (2009). Se Ferrara é mais experimental, abdicando das formalidades imagéticas e narrativas, Garrone faz o inverso, criando, junto com o cinematografista Paolo Carnera, belíssimas imagens do deserto, mas esvaziando o conteúdo, transformando o drama real em um filme artificial.

Eu, Capitão é o representante da Itália na corrida do Oscar de Melhor Filme Internacional.

Nota:

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