Ferrari | 2023
O conturbado homem por trás das máquinas: uma cinebriografia elegante de Michael Mann
No último ano tivemos uma enxurrada de cinebiografias, principalmente no Brasil, com obras como Meu Nome é Gal, Mussum, O Filmis, Meu Sangue Ferve Por Você, entre outros. Isso faz com que muita gente pense duas vezes antes de assistir a mais uma. Só que dessa vez, quem assina é o consagrado diretor americano, Michael Mann (Colateral, Fogo Contra Fogo), provando que uma boa direção faz de qualquer história um belo filme. Não que a história de Enzo Ferrari seja algo que deva passar em branco pelo cinema, mas filmes como, por exemplo, o recente Bob Marley: One Love (2024), acabam fazendo da história de vida de um grande ícone, uma obra pouco interessante. Mann, em suas obras anteriores, já equilibrava muito bem o melodrama com a ação e a tensão dos embates entre seus personagens sempre bem estruturados. Sabendo que o domínio da forma cinematográfica vai sobressaltar ao enredo do filme, assistir a Ferrari se torna uma experiência estética e sonora digna de uma boa sala de cinema.
O retrato proposto pelo diretor americano se compromete a passar ares bastante italianos, obviamente ambientado no país napolitano, Mann usa do drama da ópera, espetáculo que surgiu na última década do século XVI, em Florença, para costurar as cenas mais intensas em Ferrari. A música perpassa pela contemplação do espetáculo ao vivo, mas sem se reduzir a isso. Ela é usada para preencher momentos melancólicos ou em uma ousada inserção enquanto estamos estarrecidos pelo acidente gravíssimo que culminou na morte de diversas pessoas, entre elas, Alfonso De Portago, seu piloto prodígio (interpretado pelo ator brasileiro Gabriel Leone), mulheres e crianças.
Essa bela composição e sua preocupação estética em passar um visual extremamente elegante através dos tons do filme, que são amarelados e com muitas cenas em meia luz, no figurino, na seriedade e intensidade dos personagens e nos detalhes de suas residências; talvez sirvam para compensar o incômodo que traz o uso da língua inglesa e o de atores não italianos em Ferrari. Algo que dificilmente passa despercebido e é passível de críticas negativas, mas que é comum em produções americanas em outros países.
O empresário Enzo Ferrari (Adam Driver), tem como pilar de sua vida, o trabalho, mas esse pilar não se sustenta sozinho. A seu lado está Laura Ferrari (Penélope Cruz), sua esposa e sócia, extremamente presente e grande parceira de negócios. Ela lida com a parte financeira e possui bastante influência nas decisões tomadas por Enzo. Penélope Cruz encarna sua força e extravagância latina com intensidade na personagem italiana. E Driver faz seu papel com um vigor e seriedade que abrilhantam o personagem. Mesmo assim, os sotaques forçados muitas vezes vacilam, porém sem comprometer demais as atuações.
Além de sua esposa, Enzo mantém uma relação extraconjugal, iniciada no período em que serviu na Guerra. Encontrou nos braços de Lina Lardi (Shailene Woodley) o conforto que precisava em tempos sombrios. Woodley faz uma interpretação serena, da mulher que é terna e um refúgio confortável para o empresário. Tão serena que chega a dizer: “eu deveria ser mais italiana e não aceitar tudo isso”, mostrando o quanto a incomoda ter que viver como uma peça escondida na vida de Enzo. No meio desse triângulo amoroso, a direção de Mann acerta em utilizar doses homeopáticas deste melodrama familiar, que envolve o luto por um filho perdido e a incerteza de um futuro com um novo filho bastardo. Como um homem da mídia, sempre nos holofotes em decorrência das corridas e dos lançamentos de suas novas Ferraris, Enzo, por mais que demonstre mais apreço por sua nova família com Lina, encontra dificuldades em assumi-la. Muito se dá por conta do respeito e enorme carinho que também sente por sua esposa Laura.
O tratamento do trabalho de fotografia no filme é incisivo, no sentido de que, com a utilização de muitas cenas feitas em planos detalhe, close-ups e primeiríssimos planos, nos traz imersão nos dramas pessoais e nas tensões em Ferrari. Muitas vezes vemos o rosto de Adam Driver encher a tela, ou em um plano e contra plano de parte de sua face e de sua nuca. O mesmo se dá em cenas com Penélope Cruz de olhos marejados por seu filho perdido. Tudo isso adorna a obra que formalmente vai se mostrando metamorfa, ao sair desses momentos de luto e conflito bastante próximos da câmera, para os planos abertos dos carros em movimento. O trabalho de CGI é bastante competente, nada se compara à cena crítica do acidente em movimento, como um recorte Hitchcockiano, que nos pega desprevenidos em meio a aceleração e fluidez dos motores na estrada.
Ferrari é uma obra que esbanja forma, fluidez e que mostra o lado complexo do grande homem por trás da marca de carros sob a assinatura estética do diretor. Michael Mann se destaca outra vez em fazer uma bela cinebiografia, como em O Informante (1999), estrelado por Al Pacino. Dá o devido holofote às mulheres na vida e nas decisões tomadas pelo empresário. Traz um rigor técnico na edição e design de som, com carros com motores potentes, que, quando fazem curvas e aceleram, nos fazem sentir a vibração da poltrona. Não deixa de fora suas derrotas, deslizes e sentimentos de culpa, evidenciando que Enzo é um grande articulador nos negócios e também em sua vida pessoal, onde administra duas relações amorosas intensas, sua exposição na mídia e sua luta para fazer da Ferrari um nome grandioso, e transformá-lo em seu legado.